quarta-feira, agosto 30, 2006

Farelos.

- Pare de destruir minhas correspondências.
- Elas só vêm com tristeza.
- Mas são minhas. Há quanto tempo você as tem destruído?
- Muito.
- Quanto?
- Não importa.
- Claro que importa.
- Sim, o tempo suficiente para que você ficasse feliz.
- Não pode ser.
- Não notou o quanto as coisas melhoraram desde que as cartas não mais chegaram?
- É crueldade sua.
- Não, não é; sejamos práticos: as cartas a maltratavam, o que por sua vez me afligia, e eu para sanar tudo acabei com a entrega das cartas. Elas só lhe traziam o vão da dor, o inferno, por que não desmerecê-las? Por que não vivermos em paz?
- “Se me amas, por que não me poupas dessa tua visão cruel e amarga do mundo. Tens ciúmes das cartas. Não vês que me feres com este teu ciúme doente?”.
- “E tu não vês que tudo o que faço é para proteger-te? São a tua doçura e o teu desamparo que me ferem de morte. Quisera eu que ficasses de tal modo por mim, mas não, ficas por causa de um outro que se mostra por cartas dissaborosas”.
- Corte-me. Arremesse-me aos lixeiros que passam todas as segundas, terças e sextas de madrugada.
- Deixe de ser demasiado inocente. Veja o mundo, enxergue-me ao seu lado como um parceiro e aliado. Mas também me ame, por favor. Estou cansado de viver com você em distância. Estou cansado de dormir ao seu lado e saber que se sou tocado é por complacência.
- Melhor seria acabarmos com o mundo então.
- Sim, as suas cartas estão todas guardadas em uma pasta colocada atrás das enciclopédias na biblioteca.

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- Tenho tanto sono.
- Eu sei, já tive a sua idade.
- As manhãs, principalmente as frias, trazem a letargia mais profunda por mim já sentida.
- Tome banho, xícara grande de café, talvez pó de guaraná.
- Tomo o café, e não adianta. Banho não, seria crueldade demais para comigo mesmo. Manhãs frias não são para banhos.
- Quentes e mornos.
- Mas aí o corpo se conforta mais ainda e o sono, que já era implacável, se torna indissolúvel. Banhos matutinos para serem eficientes precisam ser frios, como no quartel, mas não durante o inverno. Durante o inverno, banhos quentes devem ser tomados à noite, para dormir confortável.
- E as viagens de bicicleta, não despertam?
- Sim, mas logo que chego, a aula se torna chata e o sono me derruba. Babo sobre os livros e cadernos. E não sou o único, há muitos assim. Mas em suas aulas isso não acontece.
- Sério, por quê?
- Ah, suas aulas são boas, divertidas. Muitas vezes eu até penso em matar a última quando vejo que é física, detesto física, mas se vejo que será a sua aula de física, eu fico. Fico e acho bom. A parte de física que você ensina eu sei e gosto.
- Puxa, ganhei o dia. Que bom. É ótimo você ter me falado isso.
- Acho que é importante. Há professores ruins demais e muitos. Devo dizer aos bons que são bons para que se mantenham. Se todos os professores fossem ruins, eu dormiria em todas as aulas.
- É mesmo. Eu sei o que você fala.

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- Que besteira qualquer.
- Você tem saudade?
- De que?
- De besteira qualquer, daquelas que valham a pena, tem?
- Não exatamente.
- E aquelas coisas que poderiam parecer ter sido sonho.
- Não tenho esses trunfos.
- Isso não é trunfo.
- É o que então? Veleidade?
- Mais veleidade do que trunfo.
- Ter saudade de besteira qualquer é veleidade, tudo bem.
- Não é assim. Só digo que muitas pessoas simplesmente não têm tempo, nem possibilidade, de ter sonhos fantasiosos sobre seus passados, nem besteiras quaisquer. Para alguns, é luxo ter um passado memorável, um ideal conquistado um dia e que, por já ter sido perdido, se torna ambição. Há pessoas que querem resgatar o passado. Há outras que querem enterrá-lo por ter sido demais de amargo. E há outras que lutam constantemente na construção do futuro, sem pensar nem em passado nem em presente.
- Ter passado é um trunfo. Quem tem passado, mais facilmente construirá um futuro.
- Ou não, por ficar ocupado demais com lembranças.
- Depende do tipo de lembranças.
- Sim.
- O seu copo já está vazio. Vamos dormir ou quer mais um pouco?
- Ah, vamos beber só mais um pouco.
- Muito bem.

segunda-feira, agosto 28, 2006

Simples caquético enfadado.

- Do que você mais gosta na carne?
- Nada exatamente.
- E em minha carne?
- Gosto da sombra do delineador.
- Mas eu quis saber do que gosta em minha carne. Algo natural.
- Prefiro conceber a sua carne com delineador como algo natural.
- Mas isso não vale, você sabe.
- Vamos nos deitar?
- Sim. O que faremos deitados?
- Qualquer coisa, como o que fazemos agora.
- Mas não fazemos nada.
- Façamos nada na cama.
- Passarei meu dedo indicador sobre seu lábio inferior até feri-lo.
- Por que quer me ferir?
- Para criar algum evento.
- Cansa-se da pasmaceira?
- Absolutamente.
- Deseja me ferir para que eu reclame e a gente brigue?
- Não tinha pensado exatamente assim, mas quase.
- Você tem razão, precisamos inventar coisas para fazer, os dias sozinhos já não se preenchem. Quando é que a travessia terminará? Passo a me entediar dela.
- Eu também.
- E se tivéssemos um filho.
- Não mudaria, seria mais um para se entediar.
- Mas o tédio é muito relativo. Parece pertencer a mentes doentias. Somos doentios, sabe disso...
- Sei, admito, mas, ainda assim o tédio consome, me, nos consome.
- Que tal se a gente se envolvesse com instituições do terceiro setor?
- Essa é a maior bosta de todas. Prefiro dedicar o meu tédio a coisas mais improdutivas, prefiro praticar o tédio autonomamente.
- Assim só há como sucumbir.
- Não diga que eu a atraio. Você é enfastiada porque quer.
- Não, não sou. Fui contagiada. De qualquer modo, não era disso que eu estava falando.
- Vá embora então. Deixe-me saborear meu tédio até cair no sono.
- Não se renda.
- Não se renda é o caralho!
- A sua violência não me afeta.
- É porque ainda não tive forças para exaltar a voz ou correr atrás de você.
- Você é patético com esse seu modo de ser virulento. Xinga como se declamasse poemas marginais. Não sei se rio ou ignoro.
- Se não sabe o que fazer, chupe-me.
- Eu vou embora.
- Vai tarde.
- Que os vermes o consumam.
- Amém, e quando eles terminarem, eu estarei liberto, feliz, pleno. Dissolverei as fibras de minha carne ao vento e serei o nada. Já não tenho mais meios para encher isso. Fiz tudo o que queria ter feito.
- Será?
- Vai embora.
- Vou.
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He carried on licking wishes and flattering young lady’s diaries. She was still on the fifteenth of November writing anything she didn’t remember. It was quite on him, most certainly. His ways of caressing her, finding her in the middle of nowhere as eventually as catching the sight of a bee pollinating the stigma of a flower, were rather simple and tender. She was touched, but not convinced that she could fully believe. He was keen on bringing her flowers to show her that she was blossoming. Polite boy got to shag the young lady taking her virginity. Ashamed, she didn’t mean to convey to anyone, however, her sister was the first to know at a party given in her own garden. Her parents had invited the entire neighbourhood for a celebration of wealth. She was a dog, the sister, and barked it off to anyone who wanted to hear.

“Would you dance with me?”
“Don’t get me embarrassed”
“I’m so sorry, I didn’t mean to”
“But you did!”
She ran off to the lake intending to weep every grief and sorrow she’d got to let go. The pathway was rather unused and she tumbled by striking something unknown. He came just after to aid her. Her clothes were shaken and they embraced each other helplessly.

By the lake he flung a couple of pebbles, she said nothing; all they wanted was to listen to their song. They went back to the party and danced alone. Everyone saw what they would still condemn. Thereafter, they could no longer split. They had become like dogs that once stuck to each other, they can’t split any soon.

segunda-feira, agosto 21, 2006

Claro.

Assim que os dias se tornam claros e se recuperam das insalubridades turvas de outrora, a chave de ouro passa a sustentar as cinzas dos cigarros mal-apagados dela. Eu tinha dado o maldito molho de chaves a ela. Tinha a chave da porta da frente, de trás, do meu quarto, do meu escritório, da minha adega e do meu banheiro. Ela podia fazer tudo o que quisesse comigo com aquelas chaves, jamais deveria ter lhe confiado aquele molho.

Acordei com o rosto estático dela sentada a minha poltrona me assistindo dormir. Segundo ela, estivera ali desde às oito da manhã, e eram onze. Ela sorvia uma de minhas muitas deliciosas garrafas de vinho cuidadosamente guardadas na adega. Perguntei a ela o que fazia. Disse-me que tinha algo muito importante para dizer.

Tirou a roupa e entrou em minha cama como se entrasse em mim. Senti algo estranhíssimo, pela primeira vez era como se eu fosse penetrado, e por uma dama. Dei-lhe bofetadas para que parasse com aquilo, e então percebi que era pura alucinação. Ela cuspiu em meu rosto e eu mordi o seu queixo. Reclamou e começou a me bater. Eu fiz carinho a ela. Que não gostou, levantou-se da cama, pegou o sacador de rolhas e enfiou em meu peito, depois começou a torcer e destorcê-lo, abrindo buracos em mim. Eu sentia apenas um prurido leve. E quando vi o vermelho, eu disse a ela: Meu bem, você me derramou vinho, vai, lamba-me agora! E ela me lambeu com prestígio o sangue que então escorria copiosamente dos meus ‘pruridos’.

Senti minhas forças se esgotarem vagarosamente, e ela me lambia. Eu gostava daquilo, imaginava que estava atingindo um altíssimo grau de elevação espiritual, pois meu corpo era lambido, afagado, massageado, e, além disso, eu mergulhava num desfalecimento jamais sentido. Rosas plúmbeas anuviavam o quarto. As cortinas se fechavam para esconder o sol forte do meio-dia. Tudo como se fosse natural, o cheiro e gosto de sangue na boca como se fossem óbvias sensações. O mundo nunca me parecera tão certo.

Adormeci suavemente com ela me lambendo e entre os cílios eu a vi parar, se levantar da cama, se vestir e ir embora trancando a porta com o meu molho de chaves. Fiquei miseravelmente prostrado na imensa cama sorvendo meu sangue junto à sozinhez. Tentei inúmeras vezes gritar o seu nome, em vão, pois as forças se me faltavam. Desejei apenas sorver uma última taça de vinho, e ela não tinha nem mesmo me providenciado isso. Imergi em uma realidade de sensações lúgubres. Abelhas me picavam o corpo com alfinetes encantados. Minhas lágrimas escorriam por ralos que remetiam ao paraíso. Tentei me enfiar por um deles. Mas não pude. A língua travou, as sensações cessaram, o olho empedrou, a verdade se revelou, e o desejo ardente secou.

sexta-feira, agosto 18, 2006

O condicionador do tempo.

Os momentos são como fios de cabelo que se despedaçam ao banho. Amontoam-se no ralo que vai para o mundo. O condicionador fortalece e condiciona o cabelo, como faz com o tempo. Precisamos de condicionadores de tempo, para reforçar lacres vencidos e quase arrombados à força.

Preciso urgentemente de condicionadores. Anelos. Falsetas. Pernetas endinheirados que me paguem desjejuns magros. Quero apenas o essencial, ou aprender a apenas tê-lo. Cascos de vidro. Bocas de garrafa. Rolhas de latas e lentes de cristal. Eu amasso e embrulho tudo com papel feito das tripas da minha mendicância afetiva. Desafetos botaram ovos em mim que agora se debatem para sair. Fuga, lágrima e declínio. Cansei de pregar a decadência. O triunfo pede para ser alçado. Digo, tenha forças a ele, moça do rabo quente! Ela balança a cabeça afirmativamente.

Afirmações, dichavações, inclinações suspeitas em minha cama. Abro a boca e como esfomeado. Pulo esfomeado. Defeco esfomeado. Banho-me esfomeado. Ando desnorteado e esfomeado por vida e luz e sussurros redentores. Poucas palavras bastam. Viro a esquina e tenho preguiça de chegar. Porque não me contento, quero ir muito mais além, com ela, claro, ir ao mar que seja, mas além.

Espero a menina da parede que fica perto e me diz incongruências tão belas quanto escassas. Raras, poucas. Quero mais dela. Quero beber álcool com ela. Ex-menor de idade arrependida. Sou responsável por ela e por ensinamentos que não cabem na unidade chamada Nós. Ela sabe tudo o que precisa saber e ainda assim sou pago para ensiná-la. Quem tem o mar se entristece. Quem tem tudo é descontente. Quem não a tem sou eu, embora a queira plenamente. Nada de aderências nem ardências. Eu a quero na plenitude do querer, haver e poder. Ela me pode e eu a posso. É assim que vivemos e morremos todos os tempos. Ela precisa ver o centro para salvar a mim e salvar a ela mesma. Doce.

sexta-feira, agosto 11, 2006

De H. Miller à Compassividade.

“Chegou a me dar dinheiro algumas vezes para que eu dormisse com ela, até perceber que eu era um libertino sem esperança”. H.M.

Sentar em uma cadeira e assistir a alguém declamar blasfêmias incomoda terrivelmente. Quero desistir, mas tenho que me resignar. Penso que tudo deveria ser mudado. Coisas naturais e consecutivas deveriam ser exigidas. Os estudantes têm que aprender tantas coisas desinteressantes que acabam desestimulados. Entendo agora por que tantos se matam pelo caminho. Por que não exigir dos candidatos através áreas do conhecimento, em vez de exigir tudo? Quando o correto seria encaixar todo mundo... É tão chato e frustrante.

Meu último suspiro será uma instrução para melhorarem as coisas.

Não há nada tão produtivo quanto aulas incompreensíveis de exatas no cursinho junto a uma mente frutífera afogada em cafeína.

A compaixão é uma desgraça; uma catástrofe na alma coletiva da humanidade. Os mesmos idiotas compassivos são os que criam as condições propícias à proliferação da miséria alheia. A compassividade é um efeito da causa demanda. Se não houvesse miseráveis demandando compassividade, ela deixaria de existir. A compaixão deve ser abolida, racionalizada, pois em um mundo (utopicamente) racional não haveria miséria (não falo da pobreza financeira, mas sim da pobreza de modos, espírito e atitude) e conseqüentemente não haveria a compaixão, que é o elemento acentuante, ou agravante da miséria. Compaixão gera miséria e miseráveis. Os miseráveis entopem o mundo de equívocos, escrotisse e feiúra. São desalmados, estúpidos, gananciosos, interesseiros, anacrônicos, acomodados, pobres de decência e de delicadeza. Malditos miseráveis regentes do mundo.

Os germens implantados em mim por Henry Miller fritavam os meus tímpanos com gritos inflamáveis. Resolvi abrir uma de suas páginas para que se acalmassem, e vim de encontro à isto:

“Quando olho para dentro dessa buceta fodida de puta, sinto o mundo inteiro embaixo de mim, um mundo vacilante e desnorteante, um mundo gasto e polido como um crânio de leproso. Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensa deste mundo, não lhe restaria um palmo quadrado de terra onde ficar. Quando um homem aparece, o mundo cai sobre ele e quebra-lhe a espinha. Restam sempre em pé pilares apodrecidos demais; humanidade supurada demais para que o homem possa florescer. A superestrutura é uma mentira e o alicerce é um medo enorme e trêmulo. Se com intervalos seculares aparece um homem de olhar desesperado e faminto, um homem que vira o mundo de cabeça para baixo a fim de criar uma nova raça, o amor que ele traz ao mundo é transformado em fel e ele se torna um flagelo. Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e queimam, que arrancam gemidos, lágrimas e pragas, sabemos que elas provêm de um homem com as costas na parede, um homem cuja única defesa restante são suas palavras, e suas palavras são sempre mais fortes que o peso mentiroso e esmagador do mundo, mais fortes que todos os ecúleos e rodas que os covardes inventam para esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse traduzir tudo quanto há em seu coração, expressar realmente o que é sua experiência, o que é realmente sua verdade, penso que o mundo se despedaçaria, se reduziria a pedacinhos e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais reunir novamente os pedaços, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na formação do mundo... O mundo está esgotado: não resta um peido seco”.

E o Sr. Henry Miller continua na página 226 de uma das publicações em português de Trópico de Câncer o que ainda não conseguiu terminar de dizer.

sexta-feira, agosto 04, 2006

A Incomunicabilidade ou a Indiscutibilidade.

A serenidade é algo inviolável. Quero acender velas e dissecar as fibras que cobrem aquilo tudo. Um monumento. Uma ogiva de afetação e desentendimento. Ela me mente, e eu cedo a ela. Concedo as verdades vazias, os olhares sem culpa, os porquês indizíveis e secos. Ela me foge ao longe e eu tento abocanhá-la com toda a devassidão que minha fofura permite.

Somos um único e singular poço de luxo. Embebemo-nos mutuamente e nos tornamos recipientes envidraçados. Fragmentos intangíveis apesar de estarmos um dentro do outro. A parte líquida escorre por fora e se infiltra em nossos poros. Mas eu grito a ela: Não há jeito; não há poro; a redoma é completa e hermética. Ela me retruca fragilizada, basicamente um vaso de vidro irascível. Ignoro. Viro as costas mesmo para comportamentos doentios.

Solto espumas de afetação e ela não entende. As coisas assim se complicam, aconselho a ela. Que continua sem entender o que eu jamais vou explicar com a clareza que ela precisa.

Incomunicabilidade. Antonioni. Michelangelo Antonioni. Monica Vitti. Meu membro intumescido. Especulação acerca de razões plausíveis. Indiscutibilidade de certas questões. É tudo um jogo. Todos fingem. Eu finjo. Nós fingimos. Vocês fingirão eternamente. Eu talvez não. Brincar de ser legal também cansa. Pelo menos já alertei minha conviva e tutora de que em casa eu lançarei mão das máscaras. Fotografias, fugas no parque, um assassinato, muita indiferença e descaso. Ninguém se importa senão com a diversão. Eu também não. Quero mais é enfiar meus dedos no mel que desce cintilante e viscoso daquele ralo chamado ‘entranhas’ dela.

Abri a porta, desci do carro e vi a sombra de minha perna esquerda sobre um gramado curto e miseravelmente pavimentado. Foi a gota d’água, disse a mim mesmo. O teatro do absurdo me cansa. As mentiras do ‘amanhã cedo’ estão perdendo o foco. Preciso reinventar meu palco. Reescrever meus discursos e roteiro. Repensar minhas encenações. Retocar a maquiagem. Os diálogos já desusados e conseqüentemente desalmados. E foi ela quem causou tudo isso. Aquela que me ensinou a verdade dos bichos. Agora sei cuspir baforadas de ilusão com gotículas de compaixão, graças à ela. A sinceridade entreguista se aproxima, inadiavelmente. Eu quero que ela se foda. Que se vá e passe sem deixar laiá. É mentira. É falso. No entanto, quanto mais inverossímil isto for, mais eu a desejarei. Embora não possa, pois há uma conduta a ser zelada. Um ritmo de vida a ser sustentado. Axiomas pseudo-dândicas a serem ostentadas.

- Que merdas são essas?, digo a mim mesmo, um bando de farelos assoados no pavimento quebrado do boulevard?
- É a decadência uma decorrência direta da insensatez?
- Possivelmente.
- É ela uma incoerência?
- Certamente.
- Querer a ela e somente a ela é um equívoco?
- Dos mais lamentáveis.
- Há algo a ser feito?
- Temo poder dizer que não.
- E agora então?
- Mate-se ou mate a ela.
- Mas ela está longe.
- Então não mate ninguém ou mate qualquer pessoa.
- Não quero, tenho preguiça, prefiro ficar deitado em minha cama lamentando não sei exatamente o quê.
- Sabe que agora não pode mais fazer isso, não sabe?
- Sei. Mas por que não posso mais?
- Porque você já convenceu gente demais de que é um bom homem, grande e responsável e maduro.
- Mas eu sou um idiota que nem ao menos se admite ter verdades supremas e sobrepujantes. Sou um cínico de araque. Uma falsidade desfacetada e indecorosa.
- O que tem mesmo é medo de ser um rastejante.
- Também.
- Adoeça então e faça sem delicadeza, esqueça a gentileza. Seja desnecessariamente arrogante, ou então simplesmente desnecessário.
- Você sabe tanto quanto eu que o meu maior medo é a mediocridade. Se eu for desnecessário, aí sim terei inspiração suficiente para escrever o meu mais belo livro: La Mort.

Bergman é tão profundo no tratamento para com seus temas quanto ela é quando penetrada por mim. Máxima verdadeira. Caldas. Caldas que se despejam corpo dela abaixo. Lambo tudo o que é meu. Morro assim que os ventos cessarem sob aquele cobertor na ventania do alto do morro. Ser indiscutível é o que mais dói. Vejo assim que ela surgir. Mordo assim que a carne dela luzir o branco. Enterneço, juro que ainda posso, enterneço assim que seus olhos me buscarem desprevenidos daquela maldita afetação. Coloco minhas tripas de fora assim que ela me pedir com doçura. Catalogo todos os oásis do mundo em um papel sem linhas de folhas riscadas em x para a ela agradar. Mostro a dor que ela causa em meu membro e lhe explico pacientemente tudo. Vingo a miséria trazida assim que ela partir. Durmo quando a luz se apagar.