Farelos.
- Pare de destruir minhas correspondências.
- Elas só vêm com tristeza.
- Mas são minhas. Há quanto tempo você as tem destruído?
- Muito.
- Quanto?
- Não importa.
- Claro que importa.
- Sim, o tempo suficiente para que você ficasse feliz.
- Não pode ser.
- Não notou o quanto as coisas melhoraram desde que as cartas não mais chegaram?
- É crueldade sua.
- Não, não é; sejamos práticos: as cartas a maltratavam, o que por sua vez me afligia, e eu para sanar tudo acabei com a entrega das cartas. Elas só lhe traziam o vão da dor, o inferno, por que não desmerecê-las? Por que não vivermos em paz?
- “Se me amas, por que não me poupas dessa tua visão cruel e amarga do mundo. Tens ciúmes das cartas. Não vês que me feres com este teu ciúme doente?”.
- “E tu não vês que tudo o que faço é para proteger-te? São a tua doçura e o teu desamparo que me ferem de morte. Quisera eu que ficasses de tal modo por mim, mas não, ficas por causa de um outro que se mostra por cartas dissaborosas”.
- Corte-me. Arremesse-me aos lixeiros que passam todas as segundas, terças e sextas de madrugada.
- Deixe de ser demasiado inocente. Veja o mundo, enxergue-me ao seu lado como um parceiro e aliado. Mas também me ame, por favor. Estou cansado de viver com você em distância. Estou cansado de dormir ao seu lado e saber que se sou tocado é por complacência.
- Melhor seria acabarmos com o mundo então.
- Sim, as suas cartas estão todas guardadas em uma pasta colocada atrás das enciclopédias na biblioteca.
--
- Tenho tanto sono.
- Eu sei, já tive a sua idade.
- As manhãs, principalmente as frias, trazem a letargia mais profunda por mim já sentida.
- Tome banho, xícara grande de café, talvez pó de guaraná.
- Tomo o café, e não adianta. Banho não, seria crueldade demais para comigo mesmo. Manhãs frias não são para banhos.
- Quentes e mornos.
- Mas aí o corpo se conforta mais ainda e o sono, que já era implacável, se torna indissolúvel. Banhos matutinos para serem eficientes precisam ser frios, como no quartel, mas não durante o inverno. Durante o inverno, banhos quentes devem ser tomados à noite, para dormir confortável.
- E as viagens de bicicleta, não despertam?
- Sim, mas logo que chego, a aula se torna chata e o sono me derruba. Babo sobre os livros e cadernos. E não sou o único, há muitos assim. Mas em suas aulas isso não acontece.
- Sério, por quê?
- Ah, suas aulas são boas, divertidas. Muitas vezes eu até penso em matar a última quando vejo que é física, detesto física, mas se vejo que será a sua aula de física, eu fico. Fico e acho bom. A parte de física que você ensina eu sei e gosto.
- Puxa, ganhei o dia. Que bom. É ótimo você ter me falado isso.
- Acho que é importante. Há professores ruins demais e muitos. Devo dizer aos bons que são bons para que se mantenham. Se todos os professores fossem ruins, eu dormiria em todas as aulas.
- É mesmo. Eu sei o que você fala.
--
- Que besteira qualquer.
- Você tem saudade?
- De que?
- De besteira qualquer, daquelas que valham a pena, tem?
- Não exatamente.
- E aquelas coisas que poderiam parecer ter sido sonho.
- Não tenho esses trunfos.
- Isso não é trunfo.
- É o que então? Veleidade?
- Mais veleidade do que trunfo.
- Ter saudade de besteira qualquer é veleidade, tudo bem.
- Não é assim. Só digo que muitas pessoas simplesmente não têm tempo, nem possibilidade, de ter sonhos fantasiosos sobre seus passados, nem besteiras quaisquer. Para alguns, é luxo ter um passado memorável, um ideal conquistado um dia e que, por já ter sido perdido, se torna ambição. Há pessoas que querem resgatar o passado. Há outras que querem enterrá-lo por ter sido demais de amargo. E há outras que lutam constantemente na construção do futuro, sem pensar nem em passado nem em presente.
- Ter passado é um trunfo. Quem tem passado, mais facilmente construirá um futuro.
- Ou não, por ficar ocupado demais com lembranças.
- Depende do tipo de lembranças.
- Sim.
- O seu copo já está vazio. Vamos dormir ou quer mais um pouco?
- Ah, vamos beber só mais um pouco.
- Muito bem.
- Elas só vêm com tristeza.
- Mas são minhas. Há quanto tempo você as tem destruído?
- Muito.
- Quanto?
- Não importa.
- Claro que importa.
- Sim, o tempo suficiente para que você ficasse feliz.
- Não pode ser.
- Não notou o quanto as coisas melhoraram desde que as cartas não mais chegaram?
- É crueldade sua.
- Não, não é; sejamos práticos: as cartas a maltratavam, o que por sua vez me afligia, e eu para sanar tudo acabei com a entrega das cartas. Elas só lhe traziam o vão da dor, o inferno, por que não desmerecê-las? Por que não vivermos em paz?
- “Se me amas, por que não me poupas dessa tua visão cruel e amarga do mundo. Tens ciúmes das cartas. Não vês que me feres com este teu ciúme doente?”.
- “E tu não vês que tudo o que faço é para proteger-te? São a tua doçura e o teu desamparo que me ferem de morte. Quisera eu que ficasses de tal modo por mim, mas não, ficas por causa de um outro que se mostra por cartas dissaborosas”.
- Corte-me. Arremesse-me aos lixeiros que passam todas as segundas, terças e sextas de madrugada.
- Deixe de ser demasiado inocente. Veja o mundo, enxergue-me ao seu lado como um parceiro e aliado. Mas também me ame, por favor. Estou cansado de viver com você em distância. Estou cansado de dormir ao seu lado e saber que se sou tocado é por complacência.
- Melhor seria acabarmos com o mundo então.
- Sim, as suas cartas estão todas guardadas em uma pasta colocada atrás das enciclopédias na biblioteca.
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- Tenho tanto sono.
- Eu sei, já tive a sua idade.
- As manhãs, principalmente as frias, trazem a letargia mais profunda por mim já sentida.
- Tome banho, xícara grande de café, talvez pó de guaraná.
- Tomo o café, e não adianta. Banho não, seria crueldade demais para comigo mesmo. Manhãs frias não são para banhos.
- Quentes e mornos.
- Mas aí o corpo se conforta mais ainda e o sono, que já era implacável, se torna indissolúvel. Banhos matutinos para serem eficientes precisam ser frios, como no quartel, mas não durante o inverno. Durante o inverno, banhos quentes devem ser tomados à noite, para dormir confortável.
- E as viagens de bicicleta, não despertam?
- Sim, mas logo que chego, a aula se torna chata e o sono me derruba. Babo sobre os livros e cadernos. E não sou o único, há muitos assim. Mas em suas aulas isso não acontece.
- Sério, por quê?
- Ah, suas aulas são boas, divertidas. Muitas vezes eu até penso em matar a última quando vejo que é física, detesto física, mas se vejo que será a sua aula de física, eu fico. Fico e acho bom. A parte de física que você ensina eu sei e gosto.
- Puxa, ganhei o dia. Que bom. É ótimo você ter me falado isso.
- Acho que é importante. Há professores ruins demais e muitos. Devo dizer aos bons que são bons para que se mantenham. Se todos os professores fossem ruins, eu dormiria em todas as aulas.
- É mesmo. Eu sei o que você fala.
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- Que besteira qualquer.
- Você tem saudade?
- De que?
- De besteira qualquer, daquelas que valham a pena, tem?
- Não exatamente.
- E aquelas coisas que poderiam parecer ter sido sonho.
- Não tenho esses trunfos.
- Isso não é trunfo.
- É o que então? Veleidade?
- Mais veleidade do que trunfo.
- Ter saudade de besteira qualquer é veleidade, tudo bem.
- Não é assim. Só digo que muitas pessoas simplesmente não têm tempo, nem possibilidade, de ter sonhos fantasiosos sobre seus passados, nem besteiras quaisquer. Para alguns, é luxo ter um passado memorável, um ideal conquistado um dia e que, por já ter sido perdido, se torna ambição. Há pessoas que querem resgatar o passado. Há outras que querem enterrá-lo por ter sido demais de amargo. E há outras que lutam constantemente na construção do futuro, sem pensar nem em passado nem em presente.
- Ter passado é um trunfo. Quem tem passado, mais facilmente construirá um futuro.
- Ou não, por ficar ocupado demais com lembranças.
- Depende do tipo de lembranças.
- Sim.
- O seu copo já está vazio. Vamos dormir ou quer mais um pouco?
- Ah, vamos beber só mais um pouco.
- Muito bem.