domingo, fevereiro 25, 2007

Uma História (Parte sete).

Estávamos em um salão na noite seguinte dançando as valsas do Nelson Gonçalves. Um bar incrível, clube Laço de Ouro na cidade de Vaitapaílândia. Começou a tocar Ênio Morricone em dueto com Mina, aquela cantorazinha italiana sem-vergonha. Luciana mudou de humor da água para o vinho e abandonou o recinto. Corri por uns dois quarteirões de rua de terra atrás dela até encontrá-la caída no chão com o vestido todo empoeirado. Tinha tropeçado. Pediu-me que a levasse ao sul, tinha um problema para resolver. Concordei, desde que me explicasse tudo durante a viagem. Fomos ao hotel, apanhamos nossas coisas e saímos na mesma noite. Varamos a madrugada viajando em direção ao sul e Luciana me contou que tinha sido casada com um italiano, sobrinho-neto do homem, do Ênio, e que sabia todas as suas músicas de cor porque passara dez anos de sua vida com elas lhe esquentando os ouvidos. Onde, em que parte do sul, estava o tal italiano? O que ela tinha que resolver com ele? Foram questões que só me vieram à mente quando Luciana adormeceu ouvindo Schumann. Por volta do meio-dia paramos para o almoço e Luciana me disse: uma cidadezinha praiana próxima à Florianópolis. Tinha que pegar a sua divisão de bens que não tinha sido integralmente entregue quando se separaram, o italiano ficara de vender dois apartamentos e isso levaria meses. Luciana, impaciente, sumira antes de qualquer perspectiva de negócio. Tudo bem, eu disse a ela, mas não acha que agora seja muito tarde para reaver este dinheiro? Absolutamente que não, assegurou-me ela, o italiano nunca a procurara porque não sabia do seu paradeiro, e ainda acrescentou que, apesar de se tratar de um homem gordo, flatulento, que arrotava à mesa e tirava tatus monstruosos do nariz, ele era um bom sujeito. O que mais me impressionou foi o poder da música, o tocante azul e poderoso da caixa acústica. Uma simples composição de notas fez minha mulher agir loucamente e lembrar de uma partilha de bens há mais de três anos esquecida. Não fosse o Ênio, nada disto teria acontecido e teríamos continuado nossa jornada ao Mato Grosso, quando então estávamos no estado de São Paulo perto do Paraná, dormindo num motel de luxo torrando todas nossas reservas, pois confiávamos piamente na honestidade do italiano flatulento que nos entregaria de bandeja, assim que chegássemos, uma boa quantia em dinheiro vivo referente à metade do valor apurado na venda dos imóveis. Era lindo como críamos nisso, e nada mais permeava nossas consciências.
(continua).

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Uma História (Parte seis).

Sou um sujeito tímido, embora imoral. Não expresso minha imoralidade assim, escancaradamente. Mas também não posso afirmar que sou um ser expressivo. Caminho pelos ventos e desço abóbadas do celeiro de cristal. Como ia dizendo, continuei viagem com Luciana pelo sertão. Parávamos em lugares bastante incomuns, garanto. Com isto, a viajante começou a apresentar-me uma silhueta até então desconhecida. Era certamente uma mulher bacana, sim, ela era. Sabia um pouco do mundo e dos princípios universais. Encontros com moribundos e bêbados fracassados de beira de estrada lhe inspiravam belas anedotas e ótimas citações de Dostoievski. Era culta, disse-me que passou a infância lendo o que mais lhe parecesse estranho na biblioteca do pai em Poços de Caldas. Crescera com educação autônoma. Lecionada somente pelo pai e pela mãe, obteve uma liminar na justiça que a garantiu cursar a universidade sem certificados prévios: passou em quinto lugar no vestibular para Direito na Usp. Após seis meses, desencantou-se com os métodos amarrados da universidade brasileira e resolver saber das Leis por si só. Jurista autodidata, ensinou-me muitas coisas no caminho. Detalhes e aprendizados que não vêm ao caso mencionar, mas que me mancharam para sempre. Chegamos a uma cidade em Goiás, no sul do estado. Era uma sexta-feira e havia cartazes por toda a cidade anunciando o show de uma dupla sertaneja no salão perto da igreja. A muvuca mais esperada do ano, segundo o recepcionista da Pensão Morais onde nos hospedamos bem no centro da cidade. Luciana então me era fascinante. Eu a assistia tomar banhos de trinta, quarenta minutos vivendo um êxtase absoluto, plural em quantidade de sentidos aguçados. Os mais variados panos de fundo, os banheiros das pensões por onde vínhamos nos hospedando, e ela, com seu corpo esplêndido, perpetuando em minha mente os mais doces movimentos higiênicos. Nesta certa sexta-feira, ao sair do banho para irmos ao show, fitou-me nas bolas dos olhos e assim eu soube que ela não passava da mulher da minha vida, mais uma vez, para sempre, como sempre acontecia. O peito bumbou acelerado. A garganta travou e secou, as mãos e o rosto empalideceram e os pêlos da canela se eriçaram. Chegamos ao show e um dos cantores era muito alto, o outro muito baixo. Luciana me fazia dançar com ela, fazia com que eu gostasse das músicas, mandava-me buscar cerveja e acompanhá-la à porta do toalete. Conhecemos um sujeito chamado Morcego, que nos abordara querendo saber de onde vínhamos, atraído por nosso jeito de gesticular e trajar incomuns na cidade. Explicamos para ele com bastante franqueza parte dos fatos. Aprendi que a sinceridade, embora pareça assustadora para estranhos, não passa de um meio de se separar o joio do trigo. Pessoas bacanas, sensatas e decentes, acreditam na verdade independente da cabulosidade em que se caracterizam. Mas isso não importa. Morcego era professor de História para alunos de quinta à oitava série e tinha aquele quê ligeiramente petulante de quem se julga mais inteligente que os demais. Apesar da vaidade desnecessária para com gente como Nós, irrelevamos e o incluímos em nosso círculo. No dia seguinte sua esposa nos cozinhava um almoço feito de galinhada com pequi. Sem muita resistência, aceitamos seu convite e nos transferimos da pensão para sua casa, onde havia um quarto muito bem decorado e que nos protegeria dos revezes por aproximadamente dois meses. Mas isto não importa agora, deixo pra depois. Luciana neste dia me disse que precisava ensinar a idéia da leveza carnal, material e corporal. Segundo ela, homens sem crenças sublimes e místicas, mesmo que dentro de limites naturais, não conservam a virtude primordial em seu gérmen-espírito e por isso serão atormentados pela dor do descaso e da humilhação para sempre. Como eu estava altamente apaixonado por aquela Vaca, perdão pelo termo mas o compreenderão em breve, caí na onda de peixinho. Nada mais eficiente do que aprender algo que a amada ensina, mas não por “vontade de querer” arrecadar o conhecimento, e sim para se exibir para aquela que dá beijinhos molhados de boca cheia no seu coração. Entendo perfeitamente a mente das mulheres, exceto das que amo e das idiotas. Segundo a idéia que obtive dela, somos todos instrumentos sensoriais de uma super-alma. Servimos apenas para estimularmos as sensações da super-alma, ou super-corpo, até atingirmos o nível dois, quando finalmente conseguimos nos desprender desse poder para então nos tornarmos uma alma independente e que gerará, em seguida, os seus agentes sensoriais. Basicamente, somos cílios de um corpo completo. E a parte da autonomia da alma inferior é algo ainda discutível*. Devo contar agora o porquê da nossa expulsão da casa do Morcego após dois meses de hospedagem gratuita e desinteressada.

* N. do A. (Teoria baseada por Túlio Nogueira em leituras desnecessárias e sonâmbulas da madrugada de um estudante forense).
(continua).

domingo, fevereiro 04, 2007

Uma História (Parte cinco).

Por volta das três da tarde, já estávamos na trilha que corta a reserva. Uma linda floresta, bichos e pássaros por todo lado. Deveríamos ir a um pedaço da reserva que era próximo ao mar, acamparíamos na praia. Arrumamos tudo e, ao anoitecer, resolvi dar um passeio em volta do acampamento só para averiguar a região. O Dundee certamente aproveitaria a situação para dar em cima da minha mulher, e ela permitiria. As mulheres quando amam fazem de tudo para ter o objeto amado, depois que o conseguem, deixam de desejá-lo com aquele ardor. É como se a facilidade não lhes fosse interessante ou excitante. Quando ela teve de ir ao Uruguai me resgatar, eu era o homem da sua vida. Agora que estávamos morando juntos, ela dava mole pro Dundee. Homens são objetos nas mãos das mulheres. Brinquedos novos que naturalmente ficam velhos e devem ser repostos, substituídos ou ao menos terem o refil trocado. Quando retornei ao acampamento, os dois tinham sumido. Não me importei, pois conhecendo muito bem aquela mulher leviana, eu sabia o que deveria estar acontecendo. Preparei meu jantar e fui me deitar. O combinado era de que na primeira manhã sairíamos em excursão. Acordei às oito com o guarda florestal me gritando de fora da barraca. As roupas de Ashley tinham sido encontradas perto de um pântano. Mais adiante um pouco, uma perna com bota de alpinista arrojado também fora vista presa a uns galhos ciliares; era o que restava do Dundee. O policial me disse que sentia muito, mas certamente haviam violado os limites que separam o homem da besta que habita aquelas terras. Assinei os papéis e fui embora para a cidade, soberbamente frustrado por não ter feito o safári. Na verdade, nem liguei muito para a perda da Ashley, o casamento já não ia lá essas coisas. E o Dundee, não fosse seu desejo mortal por minha mulher, seria um grande amigo no futuro. Peguei o primeiro avião para casa assim que pude. Resolvi fazer uma surpresa para Mamãe e fui de táxi. Só então soube que o michê a tentara assassinar para resgatar o seguro de vida que ela lhe fizera. Só se salvou quando revelou que o seguro só seria pago caso sua morte fosse natural. O michê fugiu desapontado. Sem saber o que fazer, mamãe conseguiu convencer-me a ficar em casa por uns tempos. Como eu tinha muitos amigos, consegui logo um emprego no hospital e em duas semanas de trabalho já tinha amado quase todas as enfermeiras. Elas me mandavam flores, chocolate, convites para restaurantes finos e todas as demais coisas que eu deveria fazer, mas que não fazia por pura imperícia e descaso. Uma delas chegou até mesmo a me propor casamento. Disse-lhe que o telefone em casa tocava e que eu devia atendê-lo. Todos os dias eu trabalhava durante o dia e amava uma linda mulher à noite. Quase um ano se passou assim e tive de repensar minha vida. Acabei concluindo que aquilo não era pra mim, não, não era. Conversei com Mamãe e ela cedeu atestando minha sabedoria. Adquiri um carro com preparo para estradas em más condições e saí pelo país sem data para voltar. Meu plano era ir para o interior do Mato Grosso ver a miséria sobrepujar a razão do povo que vive como zumbis da lascívia. Um pouco antes, quando ainda passava por Minas Gerais, resolvi dar carona a uma moça que me abordara num posto de gasolina. Ela tinha seios salientes e abundantes, rosto angelical e um palavreado doce, fino, embora vestisse roupas demasiado vulgares. Uma calça jeans rasgada que marcava listras nas coxas perfeitas, uma blusa curta com decote injusto. Claro que eu a daria carona, ela também estava indo para o Mato Grosso e procurava meios para qualquer parte no oeste. O defeito de Luciana era não saber como parar de falar. Contou-me toda a monótona vida que levara durante quase toda a viagem. Paramos em uma cidadezinha para dormir e, após nos hospedarmos no mesmo quarto de hotel, fomos ao centro em busca de um restaurante. Uma conhecida sua jantava na mesma pizzaria aonde fomos e quando se viram, entregaram-se a todo tipo de cortesia desmedida. Após a janta, acabamos indo à casa da amiga, pois haveria uma festa nesta noite. Comecei a beber uma cerveja pensando que dormiria com as duas. Eu estava faceiro como porco de brinco na exposição ou jabuti de oitenta anos. Mais tarde um pouco, chegaram os convidados. A maioria era homossexual, homens e mulheres desviados, talvez mais por falta do que fazer do que por gosto. Corri e perguntei a Luciana se ela também era adoradora do Bacco Rosa. Respondeu que não, mas que não sabia da amiga. Havia muita cerveja e vinho e todos se embriagaram absurdamente. Por volta das três da manhã, já tendo desistido de seguir viagem cedo, um sujeito cujo nome era Clodoaldo iniciou o bacanal beijando Alice, que beijou Joana, que passou a bola para Marcos, que lambeu o céu da boca de Júlio, que veio para mim e então beijei Célia. Pensei que deveria tentar outra mulher, Luciana seria minha numa ocasião bastante breve. Tão rapidamente quanto à mente do homem se torna herege, corpos rolavam na sala inundada de imundície. A vileza reinou e todos se apertavam, lambiam, despiam, comiam. Puxei Célia para um quarto de porta aberta e nos tranquei. Enquanto ela protestava alegando que queria participar da orgia, eu a agradava com meus maiores e incontestáveis préstimos. Em alguns segundos ela estava entregue e resoluta e não me deixar. Os outros participantes não tardaram em sentir nossa falta e vieram ao nosso encalço. Bateram na porta e não me alterei, estávamos quase lá. Seria uma coisa incrível, comunhão indescritível dos prazeres absolutos da terra. Célia, como total estranha, total entregue, e eu total empenhado em fazer daquela noite uma das mais fantásticas de todas. Os invejosos não se cansaram e abriram a porta com uma chave reserva, pegaram-nos no mais sublime transe. Não podíamos nos mover, nem pensar, nem respirar. Estávamos grudados como cachorros e com os olhos virados como indivíduos hipnotizados. Precisaram nos bater e muito para nos acordar. Quando voltei à consciência, os malditos devassados me olhavam com ódio terrível e me expulsaram da casa sem direito a defesa. Luciana veio comigo, não queria perder a carona por causa de um bando de depravados impudicos. Mais tarde, no hotel, ela acabou me confessando que participara daquilo só para me agradar. Dormimos entrelaçados, depois de prodigalizarmos o desprezo que tínhamos para a depravação gratuita com um amor sereno e bem orquestrado.