terça-feira, setembro 26, 2006

Quanto custa para cruzar o universo?

- Quanto custa para cruzar o universo?
- Um beijo. Um sorriso riscado. E mais alguns trocados.
- Quanto?
- Não importa quanto for, nós teremos.
- Eu não sei como nem por que, mas eu acredito em você.
- É porque eu sei do que falo.
- Eu estou com tanta saudade.
- De quê?
- De você.
- Mas eu estou bem aqui do seu lado.
- Não o suficiente. Eu queria que você estivesse dentro de mim, queria que me fosse.
- Posso ser.
- Não pode, a matéria não permite.
- Tenho muito que fazer também, se conseguisse minimizar tudo, todos os pesos.
- Eu não suavizo o mundo para você?
- Não o suficiente.
- Quanto lhe pesa o mundo?
- Um bolso cheio de moedas de duas Libras.
- Só moedas de duas Libras?
- Aham.
- Que mais, que mais faz com que o mundo lhe seja pesado?
- As placas amarelas dos meus dentes. As minhas unhas mal-cortadas. Os meus cílios que se desgrudam sozinhos. Os olhos com os quais você me olha. O dedo que me aponta. A língua que me lambe. O corpo que se funde ao meu. Os ocasos que, em acordo com as alvoradas, parecem não se cansar na diligente sucessão. Há dias que levanto desejando apenas que essa regra natural se quebre por algum tempo.
- Tudo isso pesa?
- Faz a vida pesar.
- Para o bem ou para o mal?
- Para o zero.
- Como assim?
- Seria muito mais fácil viver se o peso pendesse para cima, ou para baixo, de uma vez só. Canso de ponderar e nunca atingir conclusão alguma. O peso da vida não é nem pesado nem leve, vai sendo, assim, se arrastando tolerável. Eu tolero o tolerável.
- Eu sou um peso ou uma leveza?
- Os dois, até você consegue ser os dois.
- E é isso que dói? A vida não ser nem peso nem leveza? Nem fardo nem pluma?
- Muito possivelmente.
- Por quê?
- Porque se fosse peso, seria simples, bastava me livrar dela.
- Dela quem?
- Da vida, oras, não é dela que estamos falando?
- Tá. Mas e se fosse leveza.
- Também seria fácil vivê-la com gosto. Eu a chuparia, a beberia até o pingo mais seco.
- Entendo. Vamos ao bar?
- Por que não?! Pergunta como se tivéssemos coisa mais interessante para fazer nesses nossos dias de Nós dois além de sermos Nós, como único e somente temos sido.
- Vamos ficar?
- Sim, vamos ficar, embora Nós já nos tenhamos sido por muito tempo, continuemos sendo Nós em Nós mesmos.
- A primeira pessoa do plural.
- Um dedo no seu umbigo.
- Duas primeiras pessoas do singular.
- Uma metafodagem incrível.
- Eu o fodo.
- Não, eu a fodo.
- Não, Nós nos fodemos.
- Também. Mas antes disso, eu a fodo.
- Assim a metafodagem não se aplica.
- Claro que sim.
- Venha me buscar então.
- Como?
- Correndo.
- Devo pegá-la no colo?
- Claro!
- E devo jogá-la aonde?
- Ao sofá?
- À cama?
- À mesa!
- Quer que eu fique embaixo da mesa?
- Ao lustre!
- Meu bem, é um muquifo de ponta-de-rua.
- Ah é, não há lustres.
- Nem muitos objetos. Nem coisas. Nem glórias além das nossas.
- Nem ninguém além de Nós.
- Há ninguém senão nós.
- Há sapos coaxando?
- Há vultos se anuviando?
- Há sussurros suspirando?
- Há diabetas assobiando?
- Há uma dor aqui dentro latejando, gritando, pulando, esperneando, berrando para ser extraída.
- Posso arrancá-la com meu aguilhão?
- Arrancar quem?
- Não sei, quer que eu a arranque, arranque a dor, ou a arranque da dor?
- Todos. Mas depressa, por favor, tá foda de agüentar.
- Quer uma semente?
- Para em mim plantar?
- É.
- Quero.
- Quantas você tem?
- Eu tenho várias, mas não adianta, meu bem, só uma serve.
- Por quê?
- Não sei, queria saber, mas não sei. Pergunte ao peso da vida.
- Perguntarei.
- Você pode coçar a palma da minha mão?
- Posso.
- Pronto?
- Pronto.
- A semente foi plantada?
- A semente foi plantada.

sexta-feira, setembro 22, 2006

Dra. Suzana.

Enquanto eu caminhava pela rua cheia de pedrinhas para serem chutadas, os cães me olhavam encabulados. Eu parecia ser uma espécie de demônio para eles. Estacionei a caranga vinho em um bar e disse ao homem do balcão:

- Teobaldo, uma dose da Minha Deusa e a conta, por favor.
- É pra já gurizinho.

Teobaldo sempre foi um dos meus amigos, um homem eficiente e compreensivo.

- Qual é a boa da noite?
- A busca, Teobaldo, a eterna busca da boa da noite.
- E aquela piranha que veio com aqui com você nas últimas três vezes?
- Como você mesmo disse, piranhou. Era uma piranha.
- De fato, você sempre pagava a conta e ela pedia as doses mais caras.
- Pois é, além de tudo me deixou falido. Vaca.
- Vacas mesmo. Vai guri, toma essa outra aqui que é de carvalho, recomendação minha, pela casa.
- Brigado Teobaldo, poxa, você é um bom sujeito.

Saí com o coração nos punhos e o estômago palpitando na garganta. Sentia todas as mínimas nervuras das entranhas e aquilo me era enormemente lindo. Funcionei a caranga vinho, abri o vidro e senti a fingidamente acolhedora brisa do campo, senti-me forte, vivo, inspirado, como me sinto todas as noite em vão. É primavera, mas não faz tanta diferença. As flores estão vibrantes e me sinto na obrigação de também estar, sou ou quero ser uma delas. Mas o caule apodresce, o suco azeda, a seiva embrutesce e a essência peresce. Tive dois invernos, duas primaveras e dois verões nesse ano. Um ano atípico, com apenas um outono. Talvez este tenha sido o grande erro, viver apenas um outono em um ano tão opulento, quando todas as formas se duplicaram, a vida se coloriu em trinta e duas vezes. Já não é mais a minha cidade que se transforma quatro vezes ao ano. É um lugar onde as voltas do mundo simplesmente não fazem a menor importância.

Estava em frente à casa de Suzana e quis telefoná-la para dizer que estava lá. O desejo do joguete me dominou. Disse que estava longe. Suzana saiu de pijamas e viu a caranga vinho. Entrou só para conversar comigo; tentar me convencer de que eu era louco, como fez por muito tempo após as sessões de sexo que empreendíamos em seu consultório. Seus pais viam televisão e tomavam vinho. Ela não mais sairia. Funcionei a fiel caranga bordô e a levei embora. Suzana tinha medo. Eu não. A velhice antecipada me dava aquela sensação dos aventureiros, ou presidiários, coisa de quem não tem nada a perder. Suzana implorava para que eu voltasse. Implorei-lhe um último beijo. Parei no posto central e peguei duas cervejas. Suzana não quis. Prometi-lhe que a levaria embora se tomasse. Fomos à rua do cemitério, e prometi-lhe que a levaria para casa se trepássemos sobre um túmulo. Suzana então chorava, tinha medo de mim. Eu era um monstro. Pedia a ela calma.

- Não Suzana, não é assim. Eu só quero amá-la, fazer carinho em você.
- Me leve para casa, por favor.

Os lábios pequenos, gordinhos e cheios de Suzana me convenceram, sem mais veneno, sem mais perfídia. Pedi a ela para que nunca mais me enganasse, ela jurou. Deixei-a de volta aos pais que nada perceberam entretidos com Mazzaroppi no DVD da família, e vinho. Acabei me arrependendo de não tê-la levado ao motel, a qualquer lugar. Ela tinha que ser minha sobre um túmulo, e depois beberíamos vinho e ela adoraria. Eu deveria ter insistido, somente, para o próprio bem dela.

Mais tarde eu revolveria na cama como se tivesse ingerido todos os meus desafetos. E os desgraçados planejavam as mais ousadas revoluções dentro do pobre estômago. L’alcool, eu já não posso consigo. Imagens do dia que conheci Suzana me assaltavam. Estávamos no sinaleiro. Ela virou o rosto exatamente na hora que o vermelho tinha se fechado e eu freava o carro com raiva. Quando o carro parou totalmente, olhei de novo. E ela me sorria de dentro dos óculos escuros. O vidro sem insulfilme se abriu vagarosamente e um cartão me foi oferecido. Estudei os caracteres e eles simplesmente não me faziam sentido, eram como um amontoado de letras (in)dispostas anarquicamente sobre um papel retangular e rígido. Em milésimos, o carro dela sumia no horizonte das ruas e buzinas mais palavrões ultrajavam meus ouvidos. Perdi mais um lance do sinal. Motoristas enlouqueciam, e eu vivia a plenitude do momento. No terceiro lance do sinal, avancei, parei em uma choperia, pedi uma com o copo sujo e resgatei o cartão para tentar decifrá-lo.

Disquei o número.

- Boa tarde, consultório da Dra. Suzana.
- Éh, hum, consultório de quê aí?
- A Dra. Suzana é psicanalista, em que posso ajudar?
- Quero marcar uma consulta.

domingo, setembro 10, 2006

Dias de Raquel.

Foram dias fartos. Plenos de pelo, cócoras e apelo. Eu a via deslizar pelos segundos. Ela corria para segurar minha mão. Queria alcançar o elevador, e eu não deixava. Ela me mandava beijos para serem trazidos pelo vento. Eles ricocheteavam em minha pele dura e eram devolvidos a ela como sopros de flor. O homenzinho verde vinha e os apanhava, os beijos, assim, de supetão.

A velha canção do cadilac vinho soa da vitrola empenada. Eles me fazem cócegas. A música, o homenzinho verde e a moça das cócoras. Eu os queria todos os dias para mim. Para parar o tempo. Para salvar os momentos. Para rir mesmo estando triste e sem saber o que fazer. O que fazer, homenzinho verde? Ele costuma dizer que tudo é muito simples. O que fazer? Ela costuma dizer que não sabe. O que fazer? Eu costumo inventar coisas para encher lingüiça. Que diferença fazem, as coisas?

Fui buscá-la para tomarmos uma dose de pinga acompanhada da conta no balcão da cachaçaria. Demos estralos. Eu disse para ela me estralar que eu então a estralaria. Ela aceitou. Eu quero vencer o ódio, não, prefiro vencer o tédio. Vamos rodar, rodar, rodar. Nós três, eu, você e ele(a).

O que resta é nada mais do que buracos. Um vazio que parece encolher. Sou eu que encolho ou é o vazio? Ela costuma saber de vazios. Preciso de mais alguns dias com ela para aprender o que ela diz deixar de saber. Quem deixa de saber é quem mais sabe de quelque chose. Ela sabe. Ele também.

Eu vou dançar a agonia e sussurrar blasfêmias no ouvidinho das minhas personagens. Vou derramar vinho em mim mesmo e beber babando para fingir que os trago de volta. Todas as garrafas serão abertas com lágrimas e suor enfumaçado. Quero mais deles vadiando pelos corredores da galeria. Mais deles no banco ao lado. As ruas todas vazias. As mesmas de sempre. Não quero mais vê-las tão cedo, as ruas.

sábado, setembro 02, 2006

Lírios diáfanos vindos do ventre dela.

De volta ao mundo, ouso me pôr. Sonho audacioso com os dias dourados de outrora. A vida pacífica já me cansa. Quero novamente o pandemônio com todos os seus sangues lubrificando a minha boca. Com a saliva a escorrer pelo corpo dela com as minhas lambidas indecentes às sete da manhã de um sábado logrado pela noite anterior. Ébrios de vinho e vomitados dos esgotos boêmios. Vivos em auto e constante degradação. A celebração incansável do melhor mestre: Baco!

Abrirei as suas pernas e direi máximas indizíveis. Atravessaremos dias, noites, garrafas e cigaretas vencidas. Cruzaremos as fronteiras políticas e virtuais que separam os homens dos deuses. Eis aqui o convite, a carta de entrada. Juntemo-nos a eles no panteão sagrado das orgias inevitavelmente fabulosas. Aprenderemos com eles o que eventualmente teremos de ensinar aos nossos pupilos para que eles salvem este nosso mundo degenerado. Façamos a perversão soçobrar os casulos (i)morais. Destruamos aqueles arquétipos anacrônicos e construamos ogivas de putaria sobre as antigas estruturas. Ensinemos o grande ato de celebração à vida chamado fodelança em todas as escolas obrigatoriamente. Façamos nossas crianças sábias e intrépidas. Subvertamos as intempestividades simplesmente por ignorá-las; sejamos os regentes por mérito da indiferença.

Eu vou sussurrar delírios do mel em seu ouvido. E você vai gozar somente por ouvi-los. Nós vamos jantar nossos dedos, rostos, restos, peles, cicatrizes e bílis junto à nossas essências, e isso se fundirá dizendo coisas que jamais imagináramos sobre Nós mesmos. O velho, antigo, doce ultrapassará o presente e se projetará ao futuro com a velocidade da luz. E tudo, tudo começará com os meus murmúrios indevidos ao seu ouvido altamente salivável. Eu quero lamber todos os poros, germes, bactérias e bostas deterioradas do seu corpo. Envolvê-la em echarpes invisíveis de afetação. Colocá-la-ei na mesma banheira que um dia me amorteceu complacentemente.

Digo, meu bem, o mundo tem cura. Basta fodermos até o fim.