sábado, março 03, 2007

Uma História (Parte oito).

Quando atingimos o estado de Santa Catarina, o sol brilhava forte e sentimos o poder magistral dos deuses tutelares das intempestividades acolchoando nossas tristezas, fracassos e temores. Tínhamos um ao outro e aventura pela frente. Luciana riscou um fósforo e acendeu seu cigarro. Deu três tragadas profundas, abaixou o vidro e tirou a cabeça pela janela para gritar “viva os dias” e se afogar na própria fumaça dispersada pelo vento. Chegamos a Garopaba num final de tarde. Encontramos uma pousadinha marota perto do mar, numa área afastada e concordamos em procurar o Sr. Flatulência somente no outro dia. O pôr-do-sol tinha sido belo demais para pensarmos em pendências. Jantamos frutos do mar com uma boa garrafa de vinho e fizemos l’amour até desmaiar com os olhos virados-trincados. Acordamos com o sol queimando nossos rostos pela cortina que deixáramos mal fechada. Pegamos o pedacinho de papel em que o endereço do homem estava escrito e pedimos informação à recepcionista. Eram onze horas da manhã quando tocamos o interfone da casa do italiano e sua mulher nos atendeu. Dissemos que tínhamos um assunto delicado para ser tratado com o homem da casa. Entramos e ela nos serviu chá com biscoitinhos enquanto o balofo tomava banho. Quando o monte de pelancas desceu as escadas e seus olhos cruzaram os de Luciana, ela começou a chorar. O italiano correu em socorrê-la totalmente afetuoso. Começaram a se beijar. Eu e a esposa do gordo nos entreolhamos estupefatos enquanto os malditos de despiam, ali, na sala de visitas da casa às onze de uma manhã de sábado. Fizeram o que tinha de ser feito num acesso inviolável de desespero. Um amor inquebrantável, inatingível, impossível de ser compreendido. Quando terminaram, continuaram nos ignorando e se perguntavam por onde tinham andado, o que tinham feito. Sacudi Luciana e pedi-lhe explicações. O gordo me deu um soco que inchou a bochecha. Tentei retribuir-lhe na pança, mas não teve efeito. Então eu disse para agirmos com sensatez. Luciana, quer ficar aqui com este gordo seboso e esquecer tudo o que aconteceu entre nós?, perguntei. Sim. Andate voi due bastardi!, exclamou o pança. Peguei sua mulher, que por sinal era bacana e chorava oceanos e sumimos de lá. Então no carro lhe disse, não se preocupe, belezura, tudo se acertará. Passamos por um boteco enquanto eu me empenhava em saber o que fazer naquele momento delicado, uma mulher se desmanchava ao meu lado. Achei que seria uma boa idéia. Poderíamos comer um pf (prato-feito) e tomar cervejas. Isso aliviaria. Não há nada melhor do que comer comida de boteco bebendo cerveja quando você não tem inspiração para como escrever as linhas dos seus dias. Geralda, a ex-mulher do Gríngola over-quilo topou na hora abrindo um daqueles sorrisos pós-soluço que desmantelam qualquer homem com um pingo de sensibilidade. Havia figuras interessantes no bar. Um homem sempre ao balcão com sua Heineken verde, um garçom com cara de bunda e moças fabulosas desfilando charme e talento pelo salão do bar carregando bandejas. Lindas. Pedi uma verdinha também, pois o simples vislumbre me secou a goela. Geralda pediu o mesmo, soltando risinhos espontâneos e lindos. Olhava-me de rabo-de-olho timidamente, toda desenxabida, sem saber o que fazer, falar, pensar. Bom, pelo menos já parou de chorar, não é gracinha, eu disse a ela. É, o senhor é muito gentil, ela me disse e pude então perceber que se tratava de uma ninfetinha de no máximo vinte. Pode ficar descansada, doçura, vou cuidar muito bem de você. O que quer comer? Pedi dois pratos daquilo que ela tinha escolhido para uma garçonete pernudona daquelas enquanto bebericávamos nossas verdes.
(continua).

domingo, fevereiro 25, 2007

Uma História (Parte sete).

Estávamos em um salão na noite seguinte dançando as valsas do Nelson Gonçalves. Um bar incrível, clube Laço de Ouro na cidade de Vaitapaílândia. Começou a tocar Ênio Morricone em dueto com Mina, aquela cantorazinha italiana sem-vergonha. Luciana mudou de humor da água para o vinho e abandonou o recinto. Corri por uns dois quarteirões de rua de terra atrás dela até encontrá-la caída no chão com o vestido todo empoeirado. Tinha tropeçado. Pediu-me que a levasse ao sul, tinha um problema para resolver. Concordei, desde que me explicasse tudo durante a viagem. Fomos ao hotel, apanhamos nossas coisas e saímos na mesma noite. Varamos a madrugada viajando em direção ao sul e Luciana me contou que tinha sido casada com um italiano, sobrinho-neto do homem, do Ênio, e que sabia todas as suas músicas de cor porque passara dez anos de sua vida com elas lhe esquentando os ouvidos. Onde, em que parte do sul, estava o tal italiano? O que ela tinha que resolver com ele? Foram questões que só me vieram à mente quando Luciana adormeceu ouvindo Schumann. Por volta do meio-dia paramos para o almoço e Luciana me disse: uma cidadezinha praiana próxima à Florianópolis. Tinha que pegar a sua divisão de bens que não tinha sido integralmente entregue quando se separaram, o italiano ficara de vender dois apartamentos e isso levaria meses. Luciana, impaciente, sumira antes de qualquer perspectiva de negócio. Tudo bem, eu disse a ela, mas não acha que agora seja muito tarde para reaver este dinheiro? Absolutamente que não, assegurou-me ela, o italiano nunca a procurara porque não sabia do seu paradeiro, e ainda acrescentou que, apesar de se tratar de um homem gordo, flatulento, que arrotava à mesa e tirava tatus monstruosos do nariz, ele era um bom sujeito. O que mais me impressionou foi o poder da música, o tocante azul e poderoso da caixa acústica. Uma simples composição de notas fez minha mulher agir loucamente e lembrar de uma partilha de bens há mais de três anos esquecida. Não fosse o Ênio, nada disto teria acontecido e teríamos continuado nossa jornada ao Mato Grosso, quando então estávamos no estado de São Paulo perto do Paraná, dormindo num motel de luxo torrando todas nossas reservas, pois confiávamos piamente na honestidade do italiano flatulento que nos entregaria de bandeja, assim que chegássemos, uma boa quantia em dinheiro vivo referente à metade do valor apurado na venda dos imóveis. Era lindo como críamos nisso, e nada mais permeava nossas consciências.
(continua).

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Uma História (Parte seis).

Sou um sujeito tímido, embora imoral. Não expresso minha imoralidade assim, escancaradamente. Mas também não posso afirmar que sou um ser expressivo. Caminho pelos ventos e desço abóbadas do celeiro de cristal. Como ia dizendo, continuei viagem com Luciana pelo sertão. Parávamos em lugares bastante incomuns, garanto. Com isto, a viajante começou a apresentar-me uma silhueta até então desconhecida. Era certamente uma mulher bacana, sim, ela era. Sabia um pouco do mundo e dos princípios universais. Encontros com moribundos e bêbados fracassados de beira de estrada lhe inspiravam belas anedotas e ótimas citações de Dostoievski. Era culta, disse-me que passou a infância lendo o que mais lhe parecesse estranho na biblioteca do pai em Poços de Caldas. Crescera com educação autônoma. Lecionada somente pelo pai e pela mãe, obteve uma liminar na justiça que a garantiu cursar a universidade sem certificados prévios: passou em quinto lugar no vestibular para Direito na Usp. Após seis meses, desencantou-se com os métodos amarrados da universidade brasileira e resolver saber das Leis por si só. Jurista autodidata, ensinou-me muitas coisas no caminho. Detalhes e aprendizados que não vêm ao caso mencionar, mas que me mancharam para sempre. Chegamos a uma cidade em Goiás, no sul do estado. Era uma sexta-feira e havia cartazes por toda a cidade anunciando o show de uma dupla sertaneja no salão perto da igreja. A muvuca mais esperada do ano, segundo o recepcionista da Pensão Morais onde nos hospedamos bem no centro da cidade. Luciana então me era fascinante. Eu a assistia tomar banhos de trinta, quarenta minutos vivendo um êxtase absoluto, plural em quantidade de sentidos aguçados. Os mais variados panos de fundo, os banheiros das pensões por onde vínhamos nos hospedando, e ela, com seu corpo esplêndido, perpetuando em minha mente os mais doces movimentos higiênicos. Nesta certa sexta-feira, ao sair do banho para irmos ao show, fitou-me nas bolas dos olhos e assim eu soube que ela não passava da mulher da minha vida, mais uma vez, para sempre, como sempre acontecia. O peito bumbou acelerado. A garganta travou e secou, as mãos e o rosto empalideceram e os pêlos da canela se eriçaram. Chegamos ao show e um dos cantores era muito alto, o outro muito baixo. Luciana me fazia dançar com ela, fazia com que eu gostasse das músicas, mandava-me buscar cerveja e acompanhá-la à porta do toalete. Conhecemos um sujeito chamado Morcego, que nos abordara querendo saber de onde vínhamos, atraído por nosso jeito de gesticular e trajar incomuns na cidade. Explicamos para ele com bastante franqueza parte dos fatos. Aprendi que a sinceridade, embora pareça assustadora para estranhos, não passa de um meio de se separar o joio do trigo. Pessoas bacanas, sensatas e decentes, acreditam na verdade independente da cabulosidade em que se caracterizam. Mas isso não importa. Morcego era professor de História para alunos de quinta à oitava série e tinha aquele quê ligeiramente petulante de quem se julga mais inteligente que os demais. Apesar da vaidade desnecessária para com gente como Nós, irrelevamos e o incluímos em nosso círculo. No dia seguinte sua esposa nos cozinhava um almoço feito de galinhada com pequi. Sem muita resistência, aceitamos seu convite e nos transferimos da pensão para sua casa, onde havia um quarto muito bem decorado e que nos protegeria dos revezes por aproximadamente dois meses. Mas isto não importa agora, deixo pra depois. Luciana neste dia me disse que precisava ensinar a idéia da leveza carnal, material e corporal. Segundo ela, homens sem crenças sublimes e místicas, mesmo que dentro de limites naturais, não conservam a virtude primordial em seu gérmen-espírito e por isso serão atormentados pela dor do descaso e da humilhação para sempre. Como eu estava altamente apaixonado por aquela Vaca, perdão pelo termo mas o compreenderão em breve, caí na onda de peixinho. Nada mais eficiente do que aprender algo que a amada ensina, mas não por “vontade de querer” arrecadar o conhecimento, e sim para se exibir para aquela que dá beijinhos molhados de boca cheia no seu coração. Entendo perfeitamente a mente das mulheres, exceto das que amo e das idiotas. Segundo a idéia que obtive dela, somos todos instrumentos sensoriais de uma super-alma. Servimos apenas para estimularmos as sensações da super-alma, ou super-corpo, até atingirmos o nível dois, quando finalmente conseguimos nos desprender desse poder para então nos tornarmos uma alma independente e que gerará, em seguida, os seus agentes sensoriais. Basicamente, somos cílios de um corpo completo. E a parte da autonomia da alma inferior é algo ainda discutível*. Devo contar agora o porquê da nossa expulsão da casa do Morcego após dois meses de hospedagem gratuita e desinteressada.

* N. do A. (Teoria baseada por Túlio Nogueira em leituras desnecessárias e sonâmbulas da madrugada de um estudante forense).
(continua).

domingo, fevereiro 04, 2007

Uma História (Parte cinco).

Por volta das três da tarde, já estávamos na trilha que corta a reserva. Uma linda floresta, bichos e pássaros por todo lado. Deveríamos ir a um pedaço da reserva que era próximo ao mar, acamparíamos na praia. Arrumamos tudo e, ao anoitecer, resolvi dar um passeio em volta do acampamento só para averiguar a região. O Dundee certamente aproveitaria a situação para dar em cima da minha mulher, e ela permitiria. As mulheres quando amam fazem de tudo para ter o objeto amado, depois que o conseguem, deixam de desejá-lo com aquele ardor. É como se a facilidade não lhes fosse interessante ou excitante. Quando ela teve de ir ao Uruguai me resgatar, eu era o homem da sua vida. Agora que estávamos morando juntos, ela dava mole pro Dundee. Homens são objetos nas mãos das mulheres. Brinquedos novos que naturalmente ficam velhos e devem ser repostos, substituídos ou ao menos terem o refil trocado. Quando retornei ao acampamento, os dois tinham sumido. Não me importei, pois conhecendo muito bem aquela mulher leviana, eu sabia o que deveria estar acontecendo. Preparei meu jantar e fui me deitar. O combinado era de que na primeira manhã sairíamos em excursão. Acordei às oito com o guarda florestal me gritando de fora da barraca. As roupas de Ashley tinham sido encontradas perto de um pântano. Mais adiante um pouco, uma perna com bota de alpinista arrojado também fora vista presa a uns galhos ciliares; era o que restava do Dundee. O policial me disse que sentia muito, mas certamente haviam violado os limites que separam o homem da besta que habita aquelas terras. Assinei os papéis e fui embora para a cidade, soberbamente frustrado por não ter feito o safári. Na verdade, nem liguei muito para a perda da Ashley, o casamento já não ia lá essas coisas. E o Dundee, não fosse seu desejo mortal por minha mulher, seria um grande amigo no futuro. Peguei o primeiro avião para casa assim que pude. Resolvi fazer uma surpresa para Mamãe e fui de táxi. Só então soube que o michê a tentara assassinar para resgatar o seguro de vida que ela lhe fizera. Só se salvou quando revelou que o seguro só seria pago caso sua morte fosse natural. O michê fugiu desapontado. Sem saber o que fazer, mamãe conseguiu convencer-me a ficar em casa por uns tempos. Como eu tinha muitos amigos, consegui logo um emprego no hospital e em duas semanas de trabalho já tinha amado quase todas as enfermeiras. Elas me mandavam flores, chocolate, convites para restaurantes finos e todas as demais coisas que eu deveria fazer, mas que não fazia por pura imperícia e descaso. Uma delas chegou até mesmo a me propor casamento. Disse-lhe que o telefone em casa tocava e que eu devia atendê-lo. Todos os dias eu trabalhava durante o dia e amava uma linda mulher à noite. Quase um ano se passou assim e tive de repensar minha vida. Acabei concluindo que aquilo não era pra mim, não, não era. Conversei com Mamãe e ela cedeu atestando minha sabedoria. Adquiri um carro com preparo para estradas em más condições e saí pelo país sem data para voltar. Meu plano era ir para o interior do Mato Grosso ver a miséria sobrepujar a razão do povo que vive como zumbis da lascívia. Um pouco antes, quando ainda passava por Minas Gerais, resolvi dar carona a uma moça que me abordara num posto de gasolina. Ela tinha seios salientes e abundantes, rosto angelical e um palavreado doce, fino, embora vestisse roupas demasiado vulgares. Uma calça jeans rasgada que marcava listras nas coxas perfeitas, uma blusa curta com decote injusto. Claro que eu a daria carona, ela também estava indo para o Mato Grosso e procurava meios para qualquer parte no oeste. O defeito de Luciana era não saber como parar de falar. Contou-me toda a monótona vida que levara durante quase toda a viagem. Paramos em uma cidadezinha para dormir e, após nos hospedarmos no mesmo quarto de hotel, fomos ao centro em busca de um restaurante. Uma conhecida sua jantava na mesma pizzaria aonde fomos e quando se viram, entregaram-se a todo tipo de cortesia desmedida. Após a janta, acabamos indo à casa da amiga, pois haveria uma festa nesta noite. Comecei a beber uma cerveja pensando que dormiria com as duas. Eu estava faceiro como porco de brinco na exposição ou jabuti de oitenta anos. Mais tarde um pouco, chegaram os convidados. A maioria era homossexual, homens e mulheres desviados, talvez mais por falta do que fazer do que por gosto. Corri e perguntei a Luciana se ela também era adoradora do Bacco Rosa. Respondeu que não, mas que não sabia da amiga. Havia muita cerveja e vinho e todos se embriagaram absurdamente. Por volta das três da manhã, já tendo desistido de seguir viagem cedo, um sujeito cujo nome era Clodoaldo iniciou o bacanal beijando Alice, que beijou Joana, que passou a bola para Marcos, que lambeu o céu da boca de Júlio, que veio para mim e então beijei Célia. Pensei que deveria tentar outra mulher, Luciana seria minha numa ocasião bastante breve. Tão rapidamente quanto à mente do homem se torna herege, corpos rolavam na sala inundada de imundície. A vileza reinou e todos se apertavam, lambiam, despiam, comiam. Puxei Célia para um quarto de porta aberta e nos tranquei. Enquanto ela protestava alegando que queria participar da orgia, eu a agradava com meus maiores e incontestáveis préstimos. Em alguns segundos ela estava entregue e resoluta e não me deixar. Os outros participantes não tardaram em sentir nossa falta e vieram ao nosso encalço. Bateram na porta e não me alterei, estávamos quase lá. Seria uma coisa incrível, comunhão indescritível dos prazeres absolutos da terra. Célia, como total estranha, total entregue, e eu total empenhado em fazer daquela noite uma das mais fantásticas de todas. Os invejosos não se cansaram e abriram a porta com uma chave reserva, pegaram-nos no mais sublime transe. Não podíamos nos mover, nem pensar, nem respirar. Estávamos grudados como cachorros e com os olhos virados como indivíduos hipnotizados. Precisaram nos bater e muito para nos acordar. Quando voltei à consciência, os malditos devassados me olhavam com ódio terrível e me expulsaram da casa sem direito a defesa. Luciana veio comigo, não queria perder a carona por causa de um bando de depravados impudicos. Mais tarde, no hotel, ela acabou me confessando que participara daquilo só para me agradar. Dormimos entrelaçados, depois de prodigalizarmos o desprezo que tínhamos para a depravação gratuita com um amor sereno e bem orquestrado.

quarta-feira, janeiro 31, 2007

Uma História (Parte quatro).

Chegamos a Canberra num belo dia de fim de inverno. Em poucos dias veríamos o despertar da primavera e eu estava exultante com esta perspectiva. Ashley me apresentou ao pai, secretário do governo, como noivo. Eu soube conquistar o sogro e a sogra. Após a primeira semana, empenharam-se em conseguir-me emprego num hospital da cidade. Ashley arrumou um apartamento a duas quadras do hospital onde comecei como clínico geral atendendo seis horas por dia. Ela era somente uma estudante integral de direito. Tínhamos as noites e as taças de vinho australiano somente para nós. Todas as manhãs eu acordava, ia até o café da esquina e comia rosquinhas doces, pão com manteiga e tomava uma xícara de café preto forte. Depois voltava ao apartamento levando o que minha esposa havia me pedido. Ela era bastante preguiçosa e só se levantava às oito. O gosto de ver a cara das pessoas, os dias, o relógio a me despertar, logo começou a me causar náuseas. De repente, eu vi um mês passar como se fosse uma semana, três dias como se fossem oito horas. Tudo se confundia em minha cabeça e a noção de tempo se distorcia. Passei a ser relapso comigo mesmo, com os pacientes e com todos. Um dia eu voltava do hospital e avistei um orelhão do outro lado da rua, pensei que deveria telefonar a mamãe. Quando fui atravessar a avenida, avidamente, um carro quase me atropelou. O homem encostou, desceu e gritou-me se eu era um suicida maluco. Respondi com a cabeça que não e lhe disse que queria apenas telefonar a minha mãe, com quem eu não falava havia muitos meses. Então ele me chamou pro canto e indagou baixo ao meu ouvido se eu não gostaria de tomar uma cerveja com ele. Topei na hora, afinal eu não tinha amigos. O homem contou-me que era guia turístico e que levava as pessoas por passeios pelo interior do país para ver os cangurus, crocodilos e essas coisas. Achei-o parecido com o Crocodilo Dundee, até uma faca dentada ele tinha. Sua história era bastante intrigante. Tinha se casado com uma nepalesa com quem teve seis filhos. Ela foi sua assistente de passeio até escorregar do barranco e ser deglutida pelo crocodilo. Dois de seus filhos mais tarde teriam a mesma sorte. Ele se casaria novamente com uma australiana urbana que o expulsaria de casa após quatro meses de convivência só porque ela não podia suportar a mania dele de limpar os dentes com o facão à Crocodilo Dundee após as refeições. No meio da história, descobri que ele tinha oito ornitorrincos de estimação dos quais não se separava sob hipótese nenhuma, e presumi que este teria sido o real motivo da separação. Terminamos nossa cervejinha por volta das três e meia da manhã com a garçonete nos expulsando e um safári australiano agendado e confirmado para o próximo mês, por oferecimento dele, afinal, já éramos grandes amigos. Levou-me para casa e teve de me ajudar a subir as escadas. Ashley estava a minha espera. Conta ele, que minha mulher lhe fora muito amistosa dizendo gentilezas de agradecimento. No entanto, lembro-me de acordar às onze horas da manhã do dia seguinte com curativos por todo o rosto e a cabeça sendo chutada num tambor de óleo diesel. Até hoje penso que houve uma conspiração entre Ashley e o Crocodilo Dundee. Devem ter me surrado, feito amor selvagem até o dia amanhecer, e combinado de nunca me contar de quem eu realmente apanhara. Nos outros dias, o simples pensamento de andar pelas mesmas ruas, ver o mesmo babaca do café com os gracejos matinais imbecis, ir ao hospital atender àquelas pessoas com dificuldades de se socializar e que somatizam transformando a coisa em úlceras gástricas, quedas incuráveis de cabelo, caspas, feridas bucais e amidalites infinitas, causava-me um enjôo terrível. Faltei a semana toda ao trabalho e prometi a Ashley que voltaria somente depois do safári com o Crocodilo Dundee. Aí sim a vida foi boa. Eu só assistia à televisão, apostava nos cavalos pelo telefone e comia salgadinhos de requeijão com cerveja. Num desses dias de ócio profundo, vi no noticiário que tinham descoberto uma fraude de bilhões na previdência brasileira, e que era o maior desvio de verbas públicas já ocorrido no mundo. Pensei, puxa vida, já faz quase um ano que não falo com Mamãe. E disquei a ela imediatamente. Conversamos as mais doces besteiras por quase cinco horas e finalmente entendi o quanto eu amava aquela velha pilantra. Disse-lhe que estava bem. Com dinheiro, uma mulher, um apartamento e uma salamandra amarela. E ela me contou que havia se casado com um michê de vinte anos. Achei ótimo. Sabe, coisas como esta são boas para os dois lados. O menino teria a vida confortável e prazerosa que nunca teve e em troca Mamãe viveria uma terceira idade de sexo caudaloso. Enfim o dia do safári chegou e fomos nos encontrar num restaurante na saída da cidade. O Dundee tinha uma camionete poderosa e deixamos nosso carrinho no estacionamento. Logo ele me perguntou se eu o aceitava dormindo na mesma barraca. Disse que sim, por que não, pensei. Papo foi, papo veio, e novamente Dundee tocou no assunto dizendo que não estava seguro do meu pleno entendimento sobre a questão. Ele não queria só dormir na barraca conosco, mas também dormir comigo e com ela. Bem, disse eu, pode comê-la se quiser, Sr. Dundee, mas deixe-me fora disso. Ele retrucou alegando que ainda não tinha formulado um bom jeito de me convencer, mas que o faria em breve e me persuadiria. E eu respondi, contanto que não me espanquem novamente, topo tudo. Meu interesse é ver os cangurus, as hienas, os crocodilos e os ornitorrincos selvagens.
(continua).

terça-feira, janeiro 30, 2007

Uma História (Parte três).

Em montevidéu, adoeci. E a balconista do albergue para estudantes onde eu tinha me hospedado cuidou muito bem de mim. Trazia-me chá, sopa, deu-me um quarto limpo e exclusivo. Todos os quartos eram muito sujos e cheios. Todos os dias viajantes chegavam e partiam. E eu, na verdade, já chegara doente da viagem de barco. Tinha tomado muita friagem. Rebeca logo se mostrou apaixonada por mim. Pude notar assim que recobrei a consciência. Passei uma semana, já convalescido, sem sair do albergue. Rebeca tinha tomado todas as minhas coisas: dinheiro, roupas, cartões, passaporte. Eu passava o dia todo no computador teclando com gente do mundo pela internet. Rebeca me dava o que podia, calor, comida, carinho, e em contrapartida vinha deitar-se comigo todas as noites após o expediente. Cheguei a mandar alguns e-mails para Mamãe e para alguns amigos contando o que ocorria, mas ninguém acreditou. E ainda me respondiam com piadinhas verdadeiramente engraçadas. Rebeca era uma espécie de funcionária-residente do albergue, também dona, embora ocasionalmente tivesse de prestar contas a um tal de Carlito. Quando eu a perguntava da real natureza dessa relação, ela se esquivava, fazia cara de choro, e me convencia a deixar a querela pra outra hora. Mais tarde, pois não vou deixar de lhes contar, eu descobriria que Rebeca havia sido uma prostituta do Carlito; no entanto, como todo mau negociante, Carlito se apaixonara pelo produto que vendia e caiu na desgraça: comprou o alberguinho e deu-lhe para cambiar de vida. O albergue era dado, mas ele continuava vindo para colher alguns dividendos e dar uma palpitada nos negócios. Segundo ele, apenas resgatava sua comissão. Continuando, nessa semana que passei lúcido mantido em cárcere privado e teclando de doze a quinze horas diárias na internet, conheci Ashley, uma australiana, num daqueles canais de programas para baixar música. Ambos gostávamos de Chic-Chic-Hen-Don’t-Cry e, tão logo iniciamos o papo, descobrimos múltiplas afinidades. Tínhamos o mesmo gosto por cinema: filmes do Charles Bronsom, Steaven Seagal, Mcgayver (sei lá como diabos se escreve isto) e coisas do tipo. Sabíamos de cor todos os hieróglifos egípcios. Sapateávamos Singing In the Rain no chuveiro e nunca nos esquecêramos da vantagem que era ser Earnest. Sério, Ashley era incrível, a verdadeira mulher da minha vida. Contei-lhe o que vinha ocorrendo, dos abusos e maus tratos que eu sofria naquela prisão. Claro que eu não dizia que Rebeca era uma uruguaia boasuda, mas que não passava de uma velha gorda frustrada sexualmente. Após cinco dias de namoro online, já havíamos nos tornado íntimos confidentes e Ashtrey teve uma idéia: resgatar-me. Após três dias da nossa última conversa, eu a vi entrar pela porta do Albergue, toda australiana, polaca, lindona com aquele cachecol empolado e deselegante, aquelas roupas de frio esportivas que mais parecem lonas de plástico enfiadas nas pessoas. Praticamente uma abominável monstra alpinista do inferno gelado, no bom sentido, claro. Não foi difícil escapar, pois tendo alguém que me oferecesse total suporte, bastava sair quando Rebeca fosse acompanhar algum novo grupo de hóspedes ao quarto. Até que não era ruim ter tudo na mão e mais uma Rebecuda todas as noites, pensei no exato momento em que atravessava a porta. Mas como Ashley era a mulher da minha vida, não tinha mais volta. Contratamos um falsário que me fez um passaporte australiano e em quatro dias após a fuga, já com roupas novas, barba e cabelos feitos, pois a tirana da Rebeca me proibia até de cortar as unhas, rumamos para a Oceania.

domingo, janeiro 28, 2007

Uma História (Parte dois).

No avião a caminho de casa, foi quando pude pensar em tudo o que tinha feito naquele mês e meio. Lembrei-me de Florbela, uma espanhola que conhecera num café de Kensington. Ela era artista plástica e pintava corpos nus. Conversamos muito sobre estética, plasticidade, a capacidade das tintas de nos envolver e nos tomar uma rápida baforada fora da realidade. Nessa mesma noite, fomos para uma boate e dançamos até o outro dia. Dormi na sua casa e ela me pediu para posar. Passei o dia todo caminhando pelado pela sala; ela gostava de movimento. À noite saímos para jantar e não suportamos, acabamos fazendo amor no toalete. Na terceira noite, Florbela tentou me matar. Acordei com cortes superficiais na barriga e ela me desenhando palavras incoerentes com uma faca afiada. Voltei para o hotel no meio da madrugada e pedi ao recepcionista, já meu amigo, que me providenciasse uma prostituta de classe para a próxima noite. Mandou-me uma francesa chamada Ana. Dispensei-a assim que ouvi seu sotaque de francófona. Tenho ojeriza por essas mulheres, conheci muitas delas quando morei em Paris e sempre as coisas que me diziam eram as mais falsas e traiçoeiras de todas. Elas adoram agradar-lhe os ouvidos. São tão dissimuladas e interesseiras que o Casanova perderia tudo o que tem por uma dessas. Na noite seguinte, Félix, o recepcionista Dominicano, me mandou uma russa: Nathalie. Ela era magra e flexível. Branca cor de pó de arroz e longos cabelos louros. Achei melhor levá-la para jantar primeiro. Depois tomamos algumas doses de licor e uísque. Em poucas horas, a tímida, misteriosa e envolvente Nathalie resolveu desabrochar e contou-me um pouco de sua vida. Filha de mineiros, foi entregue à adoção com três anos de idade porque os pais não podiam mais dar-lhe o sustento. Uma família de ex-burocratas do governo vermelho a adotou e deu-lhe uma boa educação em Moscou. Aos vinte e dois, tinha ido a Londres para continuar seus estudos na área da Engenharia. Os pais perderam o monopólio da ex-estatal que tinham conseguido empossar com a quebra do estado. Nathalie desde então passara e se prostituir para conseguir viver no mesmo nível econômico de antes. Cobrava caro a hora e confessou-me que o trabalho era mole: geralmente velhos e bobos carentes, como eu, que a queriam mais para companhia do que para a cama. É incrível como as pessoas não se cansam de te empregar ardis. Estão sempre em busca de um contentamento que não existe. Enganam-se e enganam aos outros. Pagam para ser enganados e para enganar. Nathalie foi realmente uma bela mulher. No avião de volta ao Brasil, conheci Sofia, uma publicitária gaúcha que voltava das férias no Reino Unido. Mamãe fora buscar-me no aeroporto e contei-lhe que estava apaixonado e que iria me casar novamente. Mamãe não me deu muito crédito e nem quis saber do que se passara comigo. Tratou-me como uma criança que sai de casa para fazer travessuras e volta arrependido. A diferença era que eu não estava nem um pouco arrependido. Dois dias depois, resgatei algum dinheiro que tinha em bancos e fundos de investimento e me mandei para Porto Alegre. Eu tinha o telefone do seu escritório e através dele descobri o endereço. Apareci às dez da manhã de uma quinta-feira com flores e chocolates. Apesar do espanto, Sofia gostara da surpresa e almoçamos juntos. Eu tinha recém chegado de viagem, não levava malas e tampouco tinha dado entrada em um hotel. Disse-lhe que a esperaria terminar o expediente lendo algum livro no café ao lado do prédio. Às cinco, horário em que se livrou do serviço por motivo de força maior, e veio me encontrar no café, ainda não tinha entendido que viajara somente para vê-la. Perguntou-me que tipo de serviço vinha eu fazer no Rio Grande e onde me hospedara. Tentei convencê-la do real sentido da coisa e ela me chamou de lunático. Acho incrível a capacidade das pessoas de subverter sentimentos e atitudes das mais nobres em coisas vis e despropositadas. Eu a amava como jamais pude amar uma mulher e ela me encarava do alto de sua ética corporativa, como se eu fizesse parte de tudo aquilo. Esse foi o segundo golpe baixo que sofri do mundo, das mulheres, e da humanidade em geral. Para mim, a humanidade são as mulheres. O que os homens fazem ou deixam de fazer não me interessa em nada. Caminhei sozinho e macambúzio pelas ruas insensíveis de Porto Alegre e tomei um barco no porto que ia para Montevidéu. Antes disso, telefonei para mamãe e contei-lhe do acontecido. Ela ouviu-me sem interrupção e ao final disse que se precisasse de alguma coisa, bastava ligar. Confesso que fiquei emocionado neste momento e até derramei algumas lágrimas. Mamãe estava na minha, tinha finalmente compreendido o real sentido da coisa.
(continua).

sábado, janeiro 27, 2007

Uma História (Parte um).

Agora que me vejo assim chutado num quarto de hotel poeirento no meio do Mato Grosso com essa tal de Teresa que tá ali no banheiro dando uma escarrada, começo a pensar nos motivos que podem ter me trazido aqui. Sabe, eu era um jovem bem-nascido, com certo talento pra demonstrar aos bobos, aquela coisa, seus pais já adoram te exibir pros outros, principalmente quando você sabe contar piadas obscenas aos cinco anos. Depois, aos doze, você dedilha Fur Elise no piano e eles se gozam. É demais, tanto pra eles quanto pra mim. Mas isso não vem ao caso, como ia dizendo, eu tinha tudo pra ser um daqueles sujeitos que dão certo. Mas a vida muito cedo me envolveu para as suas intenções mais tórridas. Quando eu tinha dezenove, papai morreu, afogou-se no Adriático quando foi dar um mergulho. Estavam num cruzeiro, ele e mamãe. Na minha festa de vinte e três, mamãe, bêbada, confessou-me que estavam brincando de caldinho e que ela perdera a noção do tempo. As pessoas acharam que ela tinha pulado ao mar para salvá-lo. Entrementes, eu estudava em Brasília para ser médico. Quando me formei, decidi que não queria ser um medíocre que usa a profissão para emergir socialmente. Fui para a Tanzânia tratar dos aidéticos, dos miseráveis, dos bêbados suicidas. Passei quatro anos entre Dodoma e o Burundi. Depois fui a Paris fazer alguns cursos de especialização e recebi prêmios por diminuir a mortandade na região onde eu trabalhara. Antes de mim, morriam seis bêbes a cada dez nascimentos, depois, passaram a morrer só quatro. Conheci Zolenka, uma polonesa fabulosa e fomos morar em Kiev. Ela era advogada da ONU e tinha ido a Paris para fazer um curso na Sorbonne. Aprendi ucraniano e polonês. Morávamos em um apartamento simpático próximo à catedral de St. Michel com suas abóbadas douradas. Durante o verão, eu me levantava por volta das oito com o cheiro do café forte da Zolenka e via o sol brilhar naqueles espelhos cor de ouro. Um dia eu quis vir ao Brasil passar alguns dias, rever os amigos, Zolenka não quis de modo algum; disse que se eu viesse, não precisaria mais voltar. Peguei um vôo da British Airways que fazia conexão em Londres. O segundo vôo demoraria três horas e eu não tava com saco de ficar em aeroporto todo esse tempo. Pedi a um taxista que me levasse a um bom hotel no centro da cidade. Eu tinha trabalhado todos aqueles anos na Ucrânia, além de ter acumulado algumas bolsas de pesquisa e os prêmios pelos serviços na África. Em Londres, eu só saía à noite. Não vi os parques, nem os museus, nada. Saí do aeroporto para ficar um dia ou dois e acabei ficando um mês e meio, até meu dinheiro acabar. O tempo todo fiquei hospedado no hotel luxuoso em Knightsbridge saindo apenas pros restaurantes e pubs. Toda noite alguém me carregava de volta pro quarto indescritivelmente impessoal do hotel. De certo, era por isso que eu não me aguentava e bebia demais todas as noites, e não saía à tarde porque não tinha forças. Conheci muitas mulheres. Inglesas, francesas, tchecas, polonesas, africanas, indianas, paquistanesas. Os recepcionistas do hotel me tratavam por Mr. Cosmopolitan. Certo dia telefonei a mamãe e disse que estava sem um tostão, bebendo todas as noites, largado em Londres e ela me mandou o dinheiro para a passagem.
(continua).

sábado, janeiro 20, 2007

O Puro do Cordialismo.

Eu queria saber falar de coisas que nunca fiz. Uma viagem com a menina bonita que se senta ao lado e minha timidez não permite dirigir-lhe a palavra. Alguns dias intocados no alto do morro sentindo apenas a brisa fria da altura com o sabor ácido do vinho tinto seco. Queria poder tricotar histórias como os pescadores tricotam suas redes todos os dias para enfrentar a labuta contra o peixe. Sopraria as velas de cem anos daqueles monges, meus amigos, que ficam aqui santificados dentro de mim. E sim, eles têm muito e todo valor. Eu não, penso que não tenho o valor deles, mas desejo tê-lo. Queria saber das núpcias do califa com suas quarenta e nove mulheres; perguntar-lhe-ia como as coisas se deram, como ele conquistou e gerencia todas em sua vida multiplicada geometricamente. Eu diria que as estrelas são alcaparras arrotadas por algum bêbado moribundo num dia de luxúria único que tivera com o Duque da Morávia na época dos grandes salões. Os setores do meu cérebro me informariam instantaneamente quaisquer alterações psíquicas oriundas de substâncias degenerativas. Para mim, o tempo rasga, apodrece, decepa a carne e acumula tentativas de se fazer alguma coisa. Os segundos são tão perversos quanto os sedativos falsos que tomamos antes de sermos submetidos às cirurgias. Prefiro o amortecedor vivo, o corpo isolado, quente, lacrado em instantes plenos de calor. Os toques, esses me impressionam, me imprimem qualidade, certificados de garantia e conduta. São eles que medem o poder e o efeito da dor. A destruição causada nem sempre transparece no primeiro beijo pós-coito, mas no toque de despedida. As mãos balançam ou tremem, apertam firmes ou buscam o inatingível. Tenho tentado gastar esses últimos instantes sobre pontes que espaçam o tempo. As curvas que me vêm à memória são inteiramente nítidas. Posso senti-las na ponta das minhas gravuras digitais. Padeço porque mereço sentir a dor do esquecimento. Alguém que buscava somente um nada tão vazio quanto quimérico, jamais poderia imaginar atingir um nada que se eleva ao nível mínimo existente. Sou doente por aqueles dentes alvos felizes e satisfeitos por se me mostrarem. Mas, mesmo assim, continuo querendo a pompa da frivolidade, os dias cheios de paspalhice ao lado dos meus deuses d’antes e d’agora. Sinto tanto a sua falta e do cheiro dos dias que vem carregado em sua companhia. São aqueles gritos sussurrados à beira da cama da madrugada que mais gosto, e mais sinto falta. Morro por saber que suas frases curtas e significantes estão pertencendo a outro alguém. Não que elas jamais tivessem pertencido a alguém, nem mesmo a mim, mas estou certo de que os outros se sentem no direito de possuí-las. Cadê aquele vento divisando o seu cabelo no mundo subalterno aos nossos desejos e caprichos? Meu bem, pode vir sabendo que no nosso mundo, mando Eu.

sábado, janeiro 13, 2007

Volevo essere così.

Quatro suspiros. Nove chuvas seguidas em seis dias. Quarto quente, úmido, pulguento. Colchão velho rasgado. Ventilador desgringolado. Sujeira pela casa, Lisa fedendo sabão de banha de porco. A noite parece inextinguível. Alcanço minha garrafa de cerveja na geladeira e penso que devo sair pra me refrescar. É uma noite vazia, resmungo à Lisa que não me dá atenção e saio. O carro recende gasolina, não tenho mais paciência nem dinheiro para mandá-lo ao conserto. Toca La Décadense no rádio mas não é para mim, não pode ser. As flores estão encharcadas. Chove tanto que me enojo. Há água por todos os lados. Eu quero ver as vantagens do mundo, as mulheres, o dia sem fim. Lisa está morta, absolutamente sem-graça. Prefiro o vigor das mais jovens. Ela é só rugas, manchas, marcas, cicatrizes, restos. Eu também, e não quero me ver num espelho feminino. Quero a pluralidade de corpos e formas, cheiros, loções distintamente novas. Lisa não entende. Acha bonito envelhecermos como dois velhinhos bobos sorridentes. Eu jamais seria um velhinho bobo sorridente, seria rabugento. Ela riria de minhas rabugices na candura de sua idiotice.

A tragédia dignifica. A dor incorpora. Os poros sentem o peso do ar. “Como você me sente quando estou dentro de você?”; “Antes, era como se um feixe de luz muito mais intenso e caloroso que o sol me atravessasse, me repartisse em duas. E agora é como se você sempre estivesse dentro de mim”.

Tenho muitas dúvidas quanto ao universo. Acho que pedaços móveis soltos numa colcha curva e infinita é demais para caber na cabeça das pessoas pequenas. Não podem conceber nada além de si mesmas, nem mesmo um elefante. Se os pequenos, digam-se medíocres, pudessem entender a cabeça de um elefante, as coisas seriam imensamente melhores, aliás, melhores talvez não, mas muito diferentes. Eu estou nessa.
Canso de dizer a ela que a sua educação foi um fracasso. Sua mãe hoje é uma corola que reza de tristeza e sofre por ela ter se casado comigo, alguém que, na visão dela, fez tudo errado. Na verdade, nem nos casamos, apenas moramos juntos, e isso já foi o suficiente para quase matar a velha. Arrepende-se amargamente de ter permitido a filhinha vir estudar na cidade. Pobre iludida, como se o demônio não existisse por trás daquela pasmaceira. E na verdade, ele não existe mesmo, é a velha da mãe dela que o inventa. Os velhos assim são o demônio, fruto dele ou ele fruto delas. Tanto faz, essas coisas que se misturam antes ou depois são sempre as mesmas desde o início. Misturas decentes só acontecem quando você obtém resultados diferentes que dependem da ordem como você mistura os ingredientes. A insatisfação é algo realmente incompreensível.