domingo, outubro 29, 2006

Bonifácio.

Ele agoniza pelos cantos da casa. Está velho, pesado, sôfrego. Dói-me o coração vê-lo assim. Um sujeito que era tão vivo, pujante de disposição e vida. Eu o via como um sol, um impulso a viver. Mas agora, tudo o que ele representa ao mundo é nada mais do que um arquétipo da decadência.

O meu amor não morre, não vai com a ida da alma à barca do inferno, purgatório ou paraíso. Ele é para mim um cânone de vida e foi com ele que aprendi a maioria das coisas que sei. Ele me cantava “bidubidubidu” com um empenho tocante. Encarava os revezes sempre de cabeça erguida, peito aberto e língua babante-esvoaçante. As tragédias, bicudas de babacas e carinhos incompreendidos eram respondidos por lambidas doces e sinceras. A ingenuidade, o mono-desejo alucinado de foder todas as cadelas no cio, a honestidade para com os seres ao redor, todos os elementos desse indivíduo só me trazem mais fofura à língua e pesar por saber que o dia do juízo final se lhe aproxima.

Antes mesmo de morrer, ele jaz ali no chão de taco, moribundo, me assiste longamente, paciente. Ele não tem medo de nada. Apesar de todo o cansaço pela idade, pouco mais de uma década, ainda se levanta e demonstra ferocidade quando qualquer coisa estranha se movimenta em frente à casa. Protetor, diligente, esperto, carinhoso. Esse é o Bonifácio, que já demonstra que o fim se aproxima. Minha tristeza só não é maior porque sei que ele viverá num paraíso muito melhor do que aqui, onde haverá ossos gordos para ele roer, crianças hiperativas como ele para brincar, cadelas constantemente no cio, as mais lindas puddles, chiuauas, bacês, cockers, todas as suas preferências. Seu membro lhe será complacentemente restituído e todos os problemas e dores de um mundo escroto cheio de mutilações cruéis serão apagados de sua memória. Um cão que mesmo sem rabo, desde o nascimento, e sem pênis, desde a revolução boêmia, continua fofo e adorável.

O Terceiro Plano nunca mais foi o mesmo depois que seus passeios públicos se limitaram à esquina da Rua Tramandaí, com objetivos meramente demarcatórios. Desde esse dia de carnificina descabida, as cadelas agonizam, esfregam-se umas nas outras e no chão tentando suprir uma carência que só ele sabia preencher. Os cios agora são para elas períodos de sofrimento intenso. E é muito possível que esse tenha sido o motivo da sua caducidade, o desgosto de viver desmembrado, sendo desumanamente forçado a ter apenas a comida como prazer. Todo e qualquer ser vivo precisa de três prazeres elementares para a manutenção da vida: Comer-beber, dormir e trepar. Meu melhor amigo foi privado de um deles que é tão ou mais importante do que os outros em determinadas fases da vida.

Vou sentir saudade de chegar em casa e ser recebido com lambidas, pulos contentes de pata suja na camisa branca, corridas pelo jardim em busca do tapete. Viva o Bonifácio, o cão mais legal do mundo. O cão da vida, intrépido, para quem não havia barreiras que impedissem a celebração da vida, o sorver do sangue, o gemer das cadelas.

3 Comments:

Blogger Jorge Ferreira said...

sua carta pro velho safado diz muito do que eu gostaria de lhe perguntar, se tivesse a chance...ta la no rasgamortalha!

11:13 AM  
Blogger Guilherme N. M. Muzulon said...

Porra! Porra! PORRA! Viva ao Boni, o fodedor ilustre fodedor!

Diga pra ele segurar um pouco mais as pontas, cara. diga isso à ele, fale por mim; que nós tamo cheganno.

12:02 PM  
Blogger Tiago Muzulon said...

Rapaz, que coisa, e o Boni ainda está vivo, em Agosto de 2010. Esse texto é de 2006.

8:03 PM  

Postar um comentário

<< Home