terça-feira, outubro 17, 2006

Blás, záz, cás.

Há memórias que se impregnam em nossas mentes. Memórias de coisas assim. Coisas assadas. Eu tenho comigo que muito dessas coisas só ocorrem a mim. Mas não pode ser verdade. Tem de acontecer com outros. O homem na estação rodoviária veio e me disse:

- E então, rapazeada, deu certo né, finalmente voltamos.
- Pois é, rapaz, que bom vê-lo por aqui.

Tínhamos nos encontrado na viagem de ida no mesmo local, e voltávamos do mesmo jeito, no mesmo dia, e mesmo horário.

- E como é que foi o seu feriado?
- O meu foi tranqüilo, de boa, e o seu?
- O meu foi uma loucura. Eu fui à cidade das Serras escondido da minha mulher para resolver alguns problemas de banco com a minha ex-mulher. Rapaz do céu, mas a bicha é ciumenta hem! Não podia nem sonhar que eu tava indo.
- Ave, mas e aí…
- Aí que eu despachei ela pra casa da mãe e disse: “Ólha, fica aí bem quietinha na sua mãe que eu vou ter que trabalhar no feriado”. Mas não é que a mulhé, boba que não é, desconfiou. E desgramou a ligar, e liga daqui e liga de lá. E pediu pra que eu ligasse pro celular dela do número de casa, mas eu não tava em casa e ligava do meu celular, daí eu dizia que era porque o telefone de casa tinha dado defeito, e ela não acreditava. Rapaz, foi terrível.
- E como que você foi fazendo pra enrolar ela?
- Ah, eu liguei pra um amigo em Dourados e pedi a ele para ligar pra ela, do número dele, mas só dar umas chamadas e desligar. Feito isso algumas vezes, eu retornei a ligar pra ela do meu celular e dizia que não tava dando para ligar do orelhão. Depois peguei um outro chip que tenho e liguei de novo, agora dizendo que ligava do celular de um amigo meu, que estava junto, e que ela podia ver que o número era de Dourados. Mas aí foi um rolo danado.
- E ela acreditou?
- Tá indo, mas tá bem desconfiada. Acabou de ligar e tá puta da cara, disse que se descobrir qualquer coisa, me mata.
- Eita, e o ônibus tá atrasando, será que você consegue chegar lá antes dela?
- É o que eu espero. Se ela descobrir eu tô fodido.
- É.

Quem não sucumbe a certos desejos nunca sabe o que é ser derrotado, levado, corrompido. A ira fugaz que existe em nós é sempre mais pujante. Tolo é aquele que ainda insiste em dominar algo tão tenaz. Sim, dei-me por vencido e prefiro a humilhação da sucumbência à dor de uma vitória solitária e sem resultados. Vencer nem sempre é bom, embora o seja na maioria das vezes.

- E você, Thiago, o que fez?
- Cara, altas coisas. Fui de bar em bar, de casa em casa, e de feira de música em feira de música.
- Bebeu bastante?
- Bastante!
- Bom, isso é bom.

Solidamente lhes apresento a versão mais escrachada de todas. A nudez dos fatos. Eu sou um fato. Um manto de hostilidade; minto, um travesseiro de depravação; minto de novo, um mimo de doçura; mais uma vez, minto: sou mesmo o que você quer que eu seja.

- Quero vê-la sorrir, quero vê-la cantar, quero ver o seu rosto dançar sem parar. Quero vê-la sorrir, quero vê-la dançar, quero ver o seu rosto… cantar sem parar!
- Eu tô doido, pfffff, é assim, queima o cérebro né? Mas eu tô falando isso só porque vocês são pessoas inteligentes, esclarecidas, mas é assim mesmo, meu, se for falar praqueles pregos, eles me batem. Eu falo porque vocês entendem. Eu só falo pra quem entende. Pifou, queimou, blefou, fritou! Sim, eu fritei muito, por isso que sou doido, tá vendo, tá me vendo? Eu queimei todo o meu cérebro, sou e fui doidão internado já em clínica psiquiátrica, hehe, offf, pff, haauhhaeh. Hauuu. Mas eu ando loucamente por aí... Mesmo sem ninguém me entender, mesmo sem ninguém me ouvir, mesmo sem ninguém saber da disgraça que acontece aqui dentro da minha cabeça, com toda essa fraqueza, essa volúpia apagada, jogada fora, desperdiçada. Eu fui inteligente um dia, meu, mas agora eu tô fodido. Êêêee, eu tô fudido!! Ninguém me entende, eu tenho dó do desamparo a que me atribuem, desamparados e desesperados são eles, que não entendem de nada. Eu não penso, eu sou doente, eu não tenho dente, eu sou vidente, cadente, negligente comigo mesmo e agora, só mais um bosta dum decadente. Eu ando por aí. Ninguém me vê. Mas eu falo e quero falar…

E, depois de ter lutado o Clube da Luta consigo mesmo, o nosso homem incorporou a alma de Maria Chiquinha e Genaro, meu bem.

- Ondcê foi, Maria Chiquinha, meu bem?
- Eu tava embaixo do pé de cedro.
- E fazendo o quê embaixo do pé de cedro?
- Ai, não posso contar, mas tinha algo desse tamanhão assim lá, ó.
- E por isso você não vai me contar o que fazia em-bai-xo do pé de cedro?
- É que eu tinha muito medo, muito medo embaixo do pé de cedro.
- E agora você quer voltar para casa, é?
- Quero.
- Mas você não vai voltar para casa, hã.
- Ai, por favor, me deixa voltar, paizinho, me deixa.
- Eu te deixo voltar pra debaixo do pé de cedro, se você quiser.

Antes de tudo isso, o nosso homem ainda tinha sacado um garrafão de vinho de cinco litros de dentro de uma moita que escaldava sob um sol intransigente de quarenta e três graus, talvez o mais quente do ano na Cidade das Serras, e bebera numa só solapada da alma pelo menos trezentos e noventa e sete mililitros do inferno fermentado. Após o nobríssimo e invejabilíssimo ato de fibra, o homem atiraria o garrafão de volta à lareira fumegante do arbusto; consternado, desalmado, vencido pelos deuses do cocô.

Após esse ápice de euforia, o mundo novamente se turvou. As nuvens se fecharam e então o que víamos eram as ruas esvaziadas de um domingo no qual eu me ia, esvaía, desapegaria, fluía aflito sabedor do que me esperava em poucas horas, ou uma noite mal-dormida ao lado do meu amigo Dilly doidão. O Dilly trazia consigo uma garrafa chamada poder, mas nem dela eu bebericaria tamanho era meu desconsolo. Ainda assim, havia as ruas centrais de uma cidade serrana que abriga monstros, duendes, anacrônicos, antológicos, faraós, lacônicos amados porém incompreendidos. Neste ligeiro entremeio, entro na fila da escatologia social com meu punhal de brilhante trazido das jazidas de Tesouro. Penetro os pescocinhos pretensamente açucarados de todos eles (as). E o que sinto? Que sabor me sobe à boca? Que teor me ferve o paladar? Sangue, pseudo-fracasso que se disfarça em dor. As pessoas temem doer e se esquecem que também causam a dor. São elas as causas da própria dor, e a causa da minha. Eu as engulo todas porque o espinho me alimenta. Vivo de colecionar tripas.

Minha amiga disse-me há pouco: “Meus pedaços estão esparramados por todos os lugares, se você encontrar algum por aí, me mande pelo correio, por favor”.

Claro, claro que eu mando, mas sem os espinhos.

Chegado em casa, Bonifácio nem mesmo me recepcionou. Estava tosado, envergonhado, despido. Parecia uma merda macambúzia ambulante. Cheio de feridas de carrapatos. Diz Vovó que é a época. Pulverizamos veneno nas gramas da casa. Alguns carrapatinhos ainda secam grudados em seu couro, é desgastante. Tento tirá-los, mas não saem. Diz Vovó que morrerão sozinhos, em breve, devido ao remédio. Tenho medo é que venham a mim, tenho medo de ter mais parasitas do que já tenho; tenho medo de acabar seco esturricado na sarjeta da alameda da cachaça, sem ao menos ter restos.

Senti-me desguarnecido ao vê-lo, o cão. Um monte sem guarda-chuva sofrendo constantes desabamentos de terra. Foi o que aconteceu comigo, de certa forma. O mais curioso é notar que tudo se deu ao mesmo tempo. Enquanto Bonifácio agonizava durante longuíssimas horas: oito, nove, dez…, não sei, no consultório da veterinária com pedaços seus sendo arrancados e muito de seu sangue sendo expurgado, o mesmo ocorria comigo, após infatigáveis sessões de tudo aquilo que todos nós sabemos muito bem.

Tenho pena de nós todos: estrelas decadentes abençoadas pelos deuses do opróbrio; mares que secam revelando peixes agonizantes; sóis que apagam entregando o segredo da luz. Vovó ainda disse ao ver meu abatimento: “A sua pressa de chegar em casa é isso aqui para mim, a minha pressa de comprar copinhos para pães-de-queijo é MUITO mais importante do que a bosta da sua”, e deu um safanão de descaso e pequenez no vento. Apenas quando já estávamos a três quadras de casa é que Vovó esboçou perguntar como havia sido a jornada. Preferi não responder.
Já me desmatriculei do cursinho e penso em comprar sacos de pó-de-guaraná para tocar a minha vida de pré-vestibulando pelas manhãs claras da fronteira. Vou ter mais tempo, mais paz, e ainda assim acho que é possível. Eles passam a me desacreditar, mas eu não me importo: Estou velho demais para atividades improdutivas e desinteressantes.

5 Comments:

Blogger Tiago Muzulon said...

eu queria ser como ALberto Caeiro, mas não posso.

10:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Olha aqui cara:
Pare de se dizer cair numa ignomínia profunda, pois ainda existem menininhas para serem comidas e músicas pra se ouvir!
race algo grandioso como o do ano passado e passe por cima.

...aliás, eu vi o vídeo do seu amigo no seu fotolog...e foi doido!

10:07 PM  
Anonymous Anônimo said...

*Trace algo...

10:08 PM  
Anonymous Anônimo said...

todo mundo quer ser fernando pessoa, uma escritora aí disse.

eu acredito em você, então surpreenda a mim, que eu surpreendo a você.

fica assim, tá?

7:35 AM  
Blogger Guilherme N. M. Muzulon said...

A alegria (zás zás zãás) vem de supetão, 'nunca tá sempre aí ou por lá'. A alegria é tangível, degustável e, então finalmente, irmão, ela que é mortal, some.

O vácuo das palavras é tudo - mesmo numa incongruência, tanto em uma contradição, o vácuo das palavras é um só e nada mais que pouco menos de tudo que é, há e existe.

Záz zás zás, daí, isso isso isso!!!

6:18 PM  

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