segunda-feira, dezembro 25, 2006

Os deuses do Araguaia.

Descobri que o feio é um caminho para o belo. A piranha me morde no pescoço, as muriçocas picam o tornozelo, o ouvido, os pêlos. Ela urra como a onça, me espinha, fura, arranha, risca minhas costas no desespero da luxúria. Tenho vontade de sová-la, mas prefiro me manter quieto, contínuo. Ela diz as insanidades que me enaltecem; adoro ser comparado à qualquer coisa ou ser qualquer coisa.

O túnel do tempo foi feito no meio da floresta, e nele nos perdemos. As pegadas da onça assustam somente os brincalhões. Sabedoria repassada de pai pra filho. Os Xavantes, quem tem a chave dos Andes, é que sabem da real história. Os Carajás sucumbem aos encantos do consumismo. Os mascates faliram, pois os artesanatos Carajás agora custam é dinheiro variando o preço de acordo com a cara do freguês. Quero mesmo é lamber o óleo que escorre daquela índia que me olha encucada, dizer pra ela nada porque somente o nada ela entenderia. Na língua Carajá há duas formas de se falar, uma que é dos homens e outra das mulheres. O sujeito precisa aprender a falar em masculino Carajá e a ouvir em feminino. Qualquer confusão verbal pode lhe trazer constrangimentos, desrespeito ou até a escravidão dentro do grupo. Mas são desleixados, não fabricam mais seus ornamentos como dantes, são displicentes. Na cidade são desordeiros, bebem, brigam, trazem problemas às pessoas. Os Xavantes fazem coisas muito mais elaboradas e interessantes. Os Xavantes têm o segredo. Atravessam a América do sul da região do Xingu diretamente pros Andes por passagens subterrâneas. Há quem fale a mesma língua Guarani no Araguaia e no Rio Grande do Sul. Como? Os Xavantes são cortezes, respeitosos. Têm veículos automotores e trajes de brancos, mas quando voltam à aldeia, despem-se todos e retornam aos velhos e sacros costumes. Os Carajás são índios embranquecidos vivendo em resevas.

O vento que divisa meus cabelos e faz meu rosto eclodir é miraculoso, vem das águas imensas, profundas. O Araguaia é um mar na época da cheia. O Natural me explicou um monte.

À noite vou pro forró me esfregar na paraibana, sonhando com a índia da aldeia. São todos pagãos, o dia para eles não importa, para mim também não. Vovó grila: “dia de ficar em casa”. Quero mesmo é saber do gosto dos outros, do gosto do Araguaia, do vento, do céu, da terra, da água, dos peixes, da floresta. Quero ser tudo e todos eles. O Matusalém poderia muito bem se chamar Florestasalém, ou Selvasalém. Eu quero mesmo é lamber o nariz batatudo daquela índia que me olhava encabulada. Câmeras são proibidas, mas o Natural vai nos descolar uma autorização com o cacique.
Vou virar terra, pirarucú, pirosca, ou o boto que nos cativou olhares encantados. Eles pulam, nadam, brincam satisfeitos. Eu poderia ser um boto, ou uma orquídia no topo da sancam. Eu poderia ser a lundí que vira botes pros índios, a garça branca, o martin pescador, a jacaranga. Eu poderia ser o Araguaia que escorre o sangue doce da terra e se multiplica em braços, armadas, ilhas, a Ilha do Bananal; o rio que é tingido de azul-marrón e cingido por voadeiras voadoras.