Série Vestibular: O início da vida.
Uma parte da vida, ou principalmente o início dela, é exatamente um campo experimental onde deve-se provar de tudo um pouco. Aceita-se chupar excrementos, alisar nervuras, massagear egos próprios e alheios, cuspir em pratos limpos, rosnar para cães endemoniados. O que vale é sentir o sabor, o mais saboroso sabor do néctar, sublinhando o paladar.
A cadela pariu cinco cãezinhos. Já se cansa deles. Quer de volta a sua vida mansa de antes. Os cafunés, as carícias indivisíveis, os quitutes proibidos. Dizemos a ela: “Vai Nana, dá mamá pros seus filhotes”, e ela abana o rabo, mas não de alegria, é de desconsolo. Tenta nos dissuadir da idéia de que ela tem de amamentá-los. Dia desses, certamente tensa, Nana atacou uma pomba. Vovó disse que é da natureza dela, “instinto”. Mas não sei, tenho medo de que ela pegue alguma doença, essas pombas parecem sebosas. Sei que, segundo Vovó, ela engatinhou pela varanda, onde uma pomba comia farelos de ração para cães, e deu um bote. Depois a pomba se debateu um pouco e a Nana saiu com ela na boca, como quem pensa: “Onde vou me servir?”.
- Dona Rosa, posso chegar até que horas na escola?
- Só até a segunda aula.
- Mas tem dias que tenho uns problemas e acabo precisando chegar na terceira.
- Eu só deixo entrar até a segunda.
- Posso sair hoje mais cedo então?
- Mais cedo que horas?
- Antes da última aula?
- Precisa falar com o Bosco.
- Beleza.
Há dias em que o sono sobrepuja sujeitos de isopor. Ficamos assim, prostrados vidrados no teto branco que parece pingar felpas. Ele diz que devo me mover, mas não dá. Toda a força de resistência da atmosfera age em desfavor. Depois, Vovó vem me chamar às oito, grilada. Fala mil coisas horríveis sobre o meu caráter e faz com que eu me sinta o crápula indecoroso que realmente sou. Aí me faço de vítima. Digo que todos me odeiam. Que sou um enorme erro. Daí ela fica com dó, até eu começar a lhe pedir comidas especiais. Então ri e me chama de bustica embusteiro. Chega a hora de fazer promessas para o futuro, e venço o mais ardiloso dos trapaceiros. Quando são dez da manhã, Vovó acredita novamente em mim, critica os nerds idiotas que vão todos os dias à aula, fala orgulhosa que eu é que estou certo de saber dosar a vida e levá-la na flauta. Qualidade é a palavra, finalizamos ao meio-dia comendo uma lasagna suculentamente nervosa.
Não entendo completamente essas pessoas que me amam ou me odeiam, e muitas vezes fazem isso várias vezes num dia só. Desacreditam tanto, que fico sendo o maior dos miseráveis e, de repente, consigo mudar. Embora minha voz seja asquerosa e minhas palavras fechadas, cansadas e de gente preguiçosa, há muitos que afirmam que tenho lábia.
Sou formado de altos e baixos tão antagônicos que já não mais diferencio o cheiro da minha própria flatulência do cheiro de gasolina dos postos. Como é bom. Às vezes vou ao posto com os únicos cincão que tenho no bolso só para sentir aquele cheirinho redentor. Que delícia, um gozo, que maravilha. Faço uma expressão sublime e digo ao frentista:
- Cinquete, per favore.
Ele ri e diz:
- Dá quase nada.
- Eu sei, cacete, põe cincão aí logo, ô!
A caranga da Vovó é boa por causa disso, inebria minhas narinas com aquele cheiro ardente de hidrocarboneto. Funciono o carro com a cabeça pra fora da janela, só para sentir aquela brisa que sai do escapamento. E então saio loucamente pelos bulevares arborizados que fedem à mofo de chuva não chovida, ou poeira não espirrada, me banhando em petróleo.
Os cães vêm logo me receber quando chego. É tanta alegria que parecem meus filhos. Sempre acabo me condoendo e arranjo qualquer coisa para dar a eles. Tipo um pedaço de salame, calabresa, queijo. Os cães adoram essas coisas, e é como se eu me sentisse na obrigação de agradá-los. As recepções calorosas que me oferecem podem salvar dias de segundos inteiros.
A cadela pariu cinco cãezinhos. Já se cansa deles. Quer de volta a sua vida mansa de antes. Os cafunés, as carícias indivisíveis, os quitutes proibidos. Dizemos a ela: “Vai Nana, dá mamá pros seus filhotes”, e ela abana o rabo, mas não de alegria, é de desconsolo. Tenta nos dissuadir da idéia de que ela tem de amamentá-los. Dia desses, certamente tensa, Nana atacou uma pomba. Vovó disse que é da natureza dela, “instinto”. Mas não sei, tenho medo de que ela pegue alguma doença, essas pombas parecem sebosas. Sei que, segundo Vovó, ela engatinhou pela varanda, onde uma pomba comia farelos de ração para cães, e deu um bote. Depois a pomba se debateu um pouco e a Nana saiu com ela na boca, como quem pensa: “Onde vou me servir?”.
- Dona Rosa, posso chegar até que horas na escola?
- Só até a segunda aula.
- Mas tem dias que tenho uns problemas e acabo precisando chegar na terceira.
- Eu só deixo entrar até a segunda.
- Posso sair hoje mais cedo então?
- Mais cedo que horas?
- Antes da última aula?
- Precisa falar com o Bosco.
- Beleza.
Há dias em que o sono sobrepuja sujeitos de isopor. Ficamos assim, prostrados vidrados no teto branco que parece pingar felpas. Ele diz que devo me mover, mas não dá. Toda a força de resistência da atmosfera age em desfavor. Depois, Vovó vem me chamar às oito, grilada. Fala mil coisas horríveis sobre o meu caráter e faz com que eu me sinta o crápula indecoroso que realmente sou. Aí me faço de vítima. Digo que todos me odeiam. Que sou um enorme erro. Daí ela fica com dó, até eu começar a lhe pedir comidas especiais. Então ri e me chama de bustica embusteiro. Chega a hora de fazer promessas para o futuro, e venço o mais ardiloso dos trapaceiros. Quando são dez da manhã, Vovó acredita novamente em mim, critica os nerds idiotas que vão todos os dias à aula, fala orgulhosa que eu é que estou certo de saber dosar a vida e levá-la na flauta. Qualidade é a palavra, finalizamos ao meio-dia comendo uma lasagna suculentamente nervosa.
Não entendo completamente essas pessoas que me amam ou me odeiam, e muitas vezes fazem isso várias vezes num dia só. Desacreditam tanto, que fico sendo o maior dos miseráveis e, de repente, consigo mudar. Embora minha voz seja asquerosa e minhas palavras fechadas, cansadas e de gente preguiçosa, há muitos que afirmam que tenho lábia.
Sou formado de altos e baixos tão antagônicos que já não mais diferencio o cheiro da minha própria flatulência do cheiro de gasolina dos postos. Como é bom. Às vezes vou ao posto com os únicos cincão que tenho no bolso só para sentir aquele cheirinho redentor. Que delícia, um gozo, que maravilha. Faço uma expressão sublime e digo ao frentista:
- Cinquete, per favore.
Ele ri e diz:
- Dá quase nada.
- Eu sei, cacete, põe cincão aí logo, ô!
A caranga da Vovó é boa por causa disso, inebria minhas narinas com aquele cheiro ardente de hidrocarboneto. Funciono o carro com a cabeça pra fora da janela, só para sentir aquela brisa que sai do escapamento. E então saio loucamente pelos bulevares arborizados que fedem à mofo de chuva não chovida, ou poeira não espirrada, me banhando em petróleo.
Os cães vêm logo me receber quando chego. É tanta alegria que parecem meus filhos. Sempre acabo me condoendo e arranjo qualquer coisa para dar a eles. Tipo um pedaço de salame, calabresa, queijo. Os cães adoram essas coisas, e é como se eu me sentisse na obrigação de agradá-los. As recepções calorosas que me oferecem podem salvar dias de segundos inteiros.
1 Comments:
Gostei cara.
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